Novo Ano, Novo Tu

de Mar Ferreira

 

Todo o jantar foi insuportável. Não bastava o lombo de bacalhau assado me dar as maiores náuseas que alguma vez experienciei, remoído pela milésima vez entre os meus molares. Não bastava que a etiqueta do vestido me criasse uma urticária tremenda na axila esquerda. Não bastava que o dedo grande do pé embatesse uma e outra vez contra a ponta afunilada dos meus saltos altos.

Tudo isto já era rotina quando saíamos os dois — ele de calça de pinças e solas rasas, eu com caracóis que levavam uma eternidade a produzir. O que tinha mudado era a comichão que se acumulava por trás do meu olho.

— Com licença, vou à casa de banho.

Ele nem virou a cara na minha direção, demasiado ocupado com a segunda dose de batatas a murro. Talvez por saber que eu era suficientemente forte, talvez por nem valorizar o meu sacrifício.

O cheiro a ambientador de limão, por muito artificial que fosse, trazia-me mais paz do que o de azeite quente que me acompanhara a refeição inteira. Só tinha vontade de me despir, tirar o soutien e a cinta, relaxar numa poça de banha e pele soltas.

Relaxar, porém, era impossível. Não com a incessante coceira que me crescia dentro do crânio. Desde que começara a tomar aqueles comprimidos que a Luísa me sugerira, os efeitos estavam cada vez piores. Confia, amiga. A Carminho ficou giríssima desde que os tomou! Até parece outra! 

Mas eu estava o oposto de giríssima. Suada e cansada, não havia forma de descontrair, de colocar o meu melhor sorriso para os sogros e cunhados. Muito menos quando a minha córnea direita teimava em arder.

Aproximei-me do espelho, para averiguar se não seria apenas uma pestana hospedada na esclera, mas o que vi estava para lá da imaginação — o olho estava maior do que o outro, como se tivesse crescido para além da pálpebra. 

— Era só o que faltava…

Durante o meu murmúrio, finalmente percebi. Não era mero inchaço ou impressão. O meu olho estava a aumentar porque ameaçava sair da órbita. Não evitei soltar um grito.

— Amor, está tudo bem? — perguntou ele com dois toques na porta. A mousse de chocolate já devia estar na mesa.

— Um momento!

Não esperei que os passos se afastassem. Ao pensar na expressão da mãe dele ao ver-me sair, de sobrolho franzido pela mousse ter esfriado, soube que não tinha alternativa.

Empurrei o olho de volta para a sua toca. Um gesto primitivo que envergonharia qualquer livro de etiqueta.

O tremendo alívio sobrepôs-se à dor, essa picada aguda que me fez libertar um pequeno guincho entredentes. Ao menos agora, poderia voltar à sala de jantar, rir ao de leve sempre que ele menosprezasse os meus dotes culinários — com gargalhadas soltas à medida que enaltecia os da própria mãe. 

Enquanto ajustava o decote, de mão já na maçaneta, ouvi o pop! que tanto temia. Nenhum retoque de maquilhagem salvaria o órgão que balançava em frente à minha bochecha.

Num passo tremido, pus-me mais uma vez perto do espelho. Por trás de onde sempre estivera o meu olho castanho, mirava-me agora uma íris azul.


SOBRE A AUTORA

Mar Ferreira

Mar Ferreira, nascida em 2003, é licenciada em Ciências da Comunicação pela NOVA FCSH, decidindo seguir a sua paixão pela área dos livros através de um mestrado em Edição de Texto na mesma faculdade. Gosta do mórbido, do romântico e dos seus gatos.


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