Numa Caixa Fechada

De Joaquim Valverde

 

Ismael ergueu com esforço o tampo pesado, revelando longos rasgões no forro branco. Através deles, entreviam-se sulcos profundos na madeira onde a mulher tentara em vão escavar uma saída. Os dedos dela eram ruínas, ossos nus que brotavam da carne quase negra, mas Ismael tentou focar-se neles. Era melhor do que olhá-la na cara.

A corda aterrou atrás de si com um som surdo. Da superfície, veio o sussurro apressado de Valdemar.

Vá, depressa. Temos pouco tempo.

Mais uma disse Ismael, imóvel. É a quinta este ano.

Está morta, não está? Ata-a e vamos sair daqui.

Ismael afagou a cruz de metal que trazia ao pescoço. Com alguns retalhos do forro destruído, improvisou um sudário sobre o rosto da mulher, passando-lhe depois a corda debaixo do torso. Enquanto trabalhava nos nós, não conseguiu afastar da mente o quanto ela, coberta com as tiras de tecido, lhe lembrava uma múmia retirada de algum passado sem nome, pronta a abater sobre o mundo a sua praga ancestral. 

À sua indicação, Valdemar começou a puxar. De seguida, o companheiro ajudou-o a içar-se da cova e juntos transportaram o cadáver para a carrinha, onde o deitaram com outros três, debaixo da lona. Encheram os buracos e seguiram caminho.

A estrada estava deserta. Valdemar conduzia com os faróis apagados, e só os pulsos regulares do seu cigarro iluminavam a noite. Noutras circunstâncias, Ismael estaria a lutar contra o embalar da brisa fresca que rolava pelas janelas abertas, mas, naquele momento, achava-se completamente desperto. Não conseguia deixar de pensar na mulher.

Não é suposto isto acontecer. Não tantas vezes.

O vulto de Valdemar encolheu os ombros nas sombras, sem tirar os olhos da estrada.

É uma zona isolada. Talvez tivesse alguma doença e ninguém soubesse. Seja o que for, não adianta pensar nisso.

E os outros? Não é estranho, acontecer a tanta gente aqui à volta? perguntou o rapaz. Talvez seja contagioso.

Estranho? Não. Valdemar inspirou fundo e, por instantes, a sua cara banhou-se de chama. As pessoas gostam de acreditar que o espírito perdura depois da morte, mas a maior parte preferia esquecer que acontece o mesmo com o corpo. Não gostam de ser lembradas de que, no final de contas, são só carne. Com a rapidez com que se livram dos corpos, o estranho é que não aconteça mais vezes.

A carrinha guinou e atrás, na caixa, os cadáveres deslizaram com um rumor abafado. Ismael estremeceu e girou no banco, perscrutando o vazio. Do outro lado do vidro traseiro, tudo era negro. Por entre olhos semicerrados contra o fumo, Valdemar estudou-o.

Está tudo bem disse, tentando um sorriso. — Dali, eles não saem.

Alguns quilómetros à frente, foram engolidos pela folhagem densa, ao tomarem o velho caminho de terra batida que conduzia à clareira. Ismael varria a cabeça de um lado ao outro, como se acordasse de um pesadelo, sondando a mancha indistinta da galeria de árvores que os ladeava. As palavras jorraram-lhe da boca.

E se não foi um erro ou uma doença? E se ela estava mesmo morta, quando a enterraram?

Disseste que ela tentou sair.

Sim, mas e se ela estava morta? Ismael hesitou. E se ela-?

O companheiro interrompeu-o com um gesto. Tinham alcançado a orla da clareira e Valdemar anunciara a chegada com o habitual sinal de luzes, mas a contrassenha tardava em chegar.

Há qualquer coisa errada — disse, ao apagar o cigarro. — O Moreira nunca se atrasa.

Desligaram o motor e escutaram. Silêncio. Só o sopro do vento e o canto das cigarras.

Podemos levá-los diretamente à quinta — sugeriu Ismael, após quinze minutos de espera. — A entrada principal não é longe daqui.

— Nem pensar. Para nossa segurança, só lidamos com o Moreira. Aquela gente vive de segredos. Se sonham que entrámos com os corpos pela porta da frente, acabam connosco.

Tamborilando no volante, Valdemar consultou o relógio da carrinha. Acendeu outro cigarro e aspirou o fumo acre.

Fica aqui — disse, ao tirar o cinto de segurança. — Vou ver se vejo alguma coisa.

O rapaz tentou protestar, mas Valdemar silenciou-o. Do porta-luvas, produziu duas facas de mato, entregando uma a Ismael. Depois, afastou-se e foi engolido pelas trevas. Só a chama do cigarro permaneceu visível, um pirilampo flutuando na noite, que acabou também por se dissipar.

Ismael apertou contra o peito o crucifixo, tentando serenar o coração. Lá fora, o vento agitava formas indistintas. Por entre o murmúrio das folhas, contudo, apercebeu-se de outro som, o barulho furtivo de algo que se movia na traseira.

Estava em pé antes de o perceber, os dedos cerrados contra o cabo da faca. Contornou a carrinha e escutou. Alguma coisa se mexia debaixo da lona. A medo, subiu à caixa para investigar. Foi nesse momento que uma sombra se projetou na sua direção, com um guincho. 

Uma coruja. Só uma coruja.

Aliviado, tentou descer da carrinha, mas a sua perna não se moveu. Procurou perceber onde estava presa, mas o seu corpo era pedra sólida. Talvez seja contagioso, pensou, enquanto colapsava entre a mortualha. 

Acima, a coruja cruzou os céus, onde estrelas impassivas rodavam nos seus eixos. Ismael olhou-as, implorando, mas nenhuma ouviu o grito congelado no seu peito.

 

*

 

— Está atrasado — disse a coisa de avental, mais facas do que homem. — Os convidados estão impacientes.

— Desculpe, Doutor. O Moreira está de cama, tivemos de enviar outro moço. Ele demorou a dar com o sítio. O coveiro deve-se ter fartado de estar à espera, deixou a carrinha abandonada no mato. Mas aqui os tem. A mulher está um pouco maltratada.

O outro contou os corpos.

— Cinco? Somos quatro esta noite — apontou, escolhendo uma faca. — Bem, não importa.

Preparava-se para dispensar o criado quando uma ideia o assaltou.

— Pensado bem, acorde o menino. É altura de ele começar a aprender.

— Sim, Doutor — assentiu, retirando-se.

O açougueiro examinou o espólio, adivinhando um serão longo e proveitoso. Eram uma ceifa excelente, principalmente o rapaz. Acariciou com a ponta da faca a cruz de metal que lhe pendia do pescoço. Sorriu. 

Quase parece que ainda está vivo.


SOBRE O AUTOR

Joaquim Valverde

Joaquim Valverde nasceu em 1998 e é astrónomo. Escreve desde que se conhece como gente, mas as suas histórias têm geralmente como destino uma gaveta poeirenta, onde jazem como cadáveres numa cripta. Mas não para sempre. A noite cai, um relâmpago ilumina o céu e um estrondo assola as grades das janelas. Elas estão prontas para sair.