O Caixão
de Carolina Fidalgo
Aos sábados, íamos sem falta à loja dos caixões. A minha mãe obrigava-me a calçar os sapatos de vela. Tinha na ideia que a sola faria a diferença: um centímetro, meio; era quanto bastasse para me ver em apuros.
Era o meu pai, brando e meigo, que me trazia pela mão. A minha mãe era doutras faúlhas, trazia em si gritos em banho-maria. Gostava que fosse o meu pai a levar-me ao umbral onde era visível a silhueta do caixoeiro.
Não havia cadeiras, mas entretinha-me a folhear os catálogos. Enamorava-me dos caixões de desenho barroco. Não gostava de simplicidade, linhas rectas; desejava cotovias e grinaldas talhadas em madeira de cerejeira. A minha mãe não estava de acordo. Era sempre o caixão-padrão que o caixoeiro me dava a provar.
Com a ajuda do meu pai, alçava a perna e deitava-me nele. Encostava a cabeça à tábua superior. Geralmente, sobrava uma folga sob os sapatos de vela. Até que chegava o dia em que me diagnosticavam crescimento. Algum dinheiro passava entre mãos. O caixão recém-comprado ficava no armazém, aguardando nova prova.
Os caixões dos meus pais dominavam a marquise do nosso apartamento. Verificavam-nos regularmente. Mais tarde, mudaram-nos para o quarto, onde ficaram ao alto, mesmo diante da cama dupla. Eu achava graça. Deitavam-se vivos; mortos, ficariam de pé?
Não ficaram. Ao morrerem, ambos os caixões recheados tomaram o seu lugar horizontal no Grande Cemitério Público.
Seguindo o seu exemplo de cuidado e diligência, ao atingir a altura definitiva, instalei o meu caixão no armário do vestíbulo. Era aquele com que sempre sonhara, revestido de algas, cavalos-marinhos e uma tapeçaria de estrelas-do-mar. Revisitava-o de mês a mês, passando lustro à madeira e aspirando o interior de veludo cor de noite. Por vezes, quase conseguia inalar o aroma prateado do espaço limpo onde me dissiparia depois de morrer. O caixão guardar-me-ia a carne e os restos, trancados, para que não me seguissem mais.
Não fui eu quem errou, mas o vizinho do lado. Sorte a sua a explosão de gás que provocou não o ter reclamado, nem a si nem ao seu caixão. Num ápice, vi-me perpassado por um diadema de chamas. Cada retalho de pele se fez fino, desabrochando em agonia escumosa. Já o meu sarcófago de repouso, a morada que namorara, ardeu até de si não sobrar mais do que a noite salgada que me prometera.
O meu corpo desagregou-se em aurora. Molares, tíbias, mucosas. Corpo branco e aceso. Corpo negro, apagado.
Quase. Cada partícula quieta, animada por minúscula brasa, agitando-se como uma pupila. Em cada uma, continuo vivo, porque não morro; não morrerei. Perdi o meu caixão, logo não ouso morrer. Não permitirei que nada rompa o baraço longo entre a consciência e o fardo, precipitando-me nesse lugar escuro que é uma morte imperfeita.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Carolina Fidalgo
Nasceu em Coimbra em 1992, mas cresceu entre a Gardunha e a Serra da Estrela. Estudou Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, tem um mestrado em Literatura e outro em Estudos Editoriais. É professora de Português. Já morou na Escócia e na China. Agora, vive na Suécia.