O Coelho-Menino

de Raquel Fontão

 

O coelho, com rosto de menino, não tinha ar de louco nem usava cartola.

Tinha umas orelhas arrastadas e desproporcionais ao corpo, mesmo andando só nas patas traseiras. Uma madeixa caía-lhe sobre o rosto, tão clara como a pele.

Por vezes, segurava as orelhas com as patas dianteiras e entrelaçava-as na cintura, para não tropeçar, ao passear por entre as árvores.

O coelho, que era menino, revestia-se numa pele aveludada, de um castanho desbotado. Nela, de quando em quando, conseguiam vislumbrar-se manchas apagadas, como sardas num rosto humano.

Sentia-se isolado naquele bosque, mesmo sendo a sua casa. Os outros animais não gostavam de conviver com ele por o acharem tão diferente, ao andar assim nas patas traseiras. Até os pequenos seres que gostavam de se saciar e acomodar em outros seres não gostavam deste coelho híbrido de aspeto desvanecido. Consideravam a sua pele sarapintada venenosa.

Um dia, farto daquele isolamento, o coelho-menino tomou uma decisão. Esfolou-se ali mesmo.

Ali, no sítio onde descansava.

Ali, no momento. Sem dor.

Primeiro, cortou as orelhas que, desgastadas, já o desgastavam ao ter de arrastá-las por todo lado. Depois, enrolou a pele que lhe descaía do coto das orelhas, enrolando-a devagarinho até que lhe saísse pelos pés. 

Tinha o desejo de ficar assim, só menino.

Por fim, quando a pele caiu, ensopando a terra cinzenta, sentou-se pacientemente à espera dos pequenos seres que já o olhavam de longe, num sorriso largo, de lascívia esfomeada.


 

SOBRE A AUTORA

Raquel Fontão

Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.

Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.

Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.