O Criador
de Cláudio André Redondo
Direcciona a agulha cuidadosamente, numa linha direita. Relembra quando começou, quando era raro os pontos ficarem certos. Demorou até conseguir orgulhar-se do seu trabalho. Estava a um nível quase profissional. Corta a linha e pára uns segundos para examinar. Perfeito! Até um cirurgião com anos de experiência ficaria com inveja.
Desliga a seringa infusora para suspender a sedoanalgesia. Encosta-se na cadeira e observa. É importante observar o processo de acordar para evitar complicações. Nesta fase, seria um desperdício se alguma coisa corresse mal.
Passam largos minutos até que algo aconteça. Finalmente, ela geme. Um som que, apesar de parecer humano, continua a ter parte animal. Ele fica tenso. Não é bom sinal, mas ainda é cedo para tirar conclusões. Espera mais um pouco. Ela começa a mexer-se. Os sons aumentam. Parecem ligeiramente mais humanos, mas ainda longe do pretendido.
Levanta-se, aproxima-se e faz-lhe festas na cabeça. «Calma, vai ficar tudo bem.» Ela olha para ele. Um olhar de confusão e de medo. Um olhar garantidamente humano. É óbvio que compreende o que lhe está a ser dito. Só falta falar. «Consegues dizer alguma coisa?»
Ela mexe-se ligeiramente na mesa de operações. Imite um gemido misturado com o que aparenta ser uma palavra. «Argrurra.» De todas as tentativas, esta é a que mais se aproximou de um som humano. Ele observa, pensativo. Talvez seja ainda o efeito da anestesia, mas a prática diz-lhe que dificilmente irá melhorar. «Consegues entender-me?» Ela agita-se, os sons tornam-se mais animalescos. O facto de já estar a mexer os membros indica que, a nível motor, a experiência foi novamente um sucesso. Se ao menos conseguisse resolver o problema da fala… Mais gemidos. «Arrurga». O resultado ainda não é o pretendido, mas sente-se confiante, apesar de tudo.
Pega no telemóvel e faz uma chamada. «Olá, irmã, prazer em ouvir a sua voz. Como está?» Sorri enquanto ouve a resposta. «Também estou bem, diria até que estou bastante bem. Parece-me que obtive os melhores resultados até à data.» Na mesa, ela começa a gemer com mais intensidade. Ele aproxima-se, leva um dedo à boca a pedir silêncio e faz-lhe festas na cabeça. «Sim, sim. Talvez tenhamos finalmente acertado no espécime certo. A melhor idade é, sem dúvida, os onze anos. Demorou, mas conseguimos.» Ri-se com vontade. Ela tenta levantar os braços, mas as amarras limitam-lhe os movimentos, levando a que fique mais agitada. Ele coloca uma mão em cima do peito dela e olha-a com um ar zangado, um olhar que diz para ela sossegar. «Acha que me consegue arranjar mais alguns desta idade?» Ela continua a mexer-se, e ele afasta-se, irritado, para prestar atenção à chamada. «São mais novos? Que pena. Reserve-me os dois, de qualquer forma. Quero experimentar uma outra coisa e pode ser que funcione ainda assim.» Ela continua inquieta. Começa a estragar-lhe a boa-disposição. «Muito obrigado, irmã. Ficarei então a aguardar. Sim, sim. O donativo vai pelo meio habitual. Muito obrigado. Adeus, adeus.» Desliga a chamada e olha para ela. O orfanato tem sido um excelente fornecedor de exemplares, mas a espera pelos espécimes com as características pretendidas já começa a incomodá-lo. Talvez seja altura de arranjar uma alternativa.
Ela mexe-se cada vez mais, cada vez mais barulhenta. Os sons já quase nada têm de humano. Ele aproxima-se, chateado. «Estás a portar-te muito mal! Vou sair por um bocado e espero que te acalmes até eu voltar. Ainda há uma série de testes que temos de fazer, mas contigo assim vai ser difícil.» Claro que podia recorrer a drogas, embora sentisse que isso prejudicava a experiência. Além disso, acreditava que, depois de umas horas, já estaria mais calma. Não seria a primeira vez. Sim, não ia deixar que este momento lhe estragasse o dia. Os resultados nunca tinham sido tão bons. Ia conseguir a sua obra-prima. Ia mudar o mundo e finalmente ser reconhecido pelo seu génio.
Despe a bata e sai, fechando a porta atrás de si. Na mesa, a criatura continuava a debater-se e a fazer barulho, mas o dorso e as patas estavam bem presos. Não conseguia levantar-se, por mais que tentasse. Tentava também virar a cabeça, sem sucesso. Os nervos e os músculos tinham sido cuidadosamente ligados, mas o cérebro parecia não perceber como controlar o seu novo corpo. Apesar de o sentir a mexer, não sabia exactamente que parte mexia. O pânico acalma-lhe os movimentos. A cabeça da menina estava tão bem unida ao corpo da cadela que era como se estivessem juntos desde sempre. O pelo quase dourado do animal ficava bem com os poucos cabelos louros que ela ainda mantinha. E os olhos azuis, agora em lágrimas, contrastavam de forma natural. Fica imóvel enquanto o pânico lentamente se transforma em dor. E chora.
«Arjuda.»
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Cláudio André Redondo
Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.