O Exorcismo do Escritor

de Dália Rodrigues

 

Sirvo-me de mais um copo. Experimento uma tinta nova. Experimento um sentimento novo, num caderno de escrituras antigas, a romper pelas costuras com as mágoas que carrega. 

Nesta última página em branco, finjo coisas que não sinto — ou tento fingir. Mas não dá. A tinta é nova, diferente, mas este papel conhece-me bem e obriga-me a continuar a sentir o real e o verdadeiro, a sentir mais… e pior.

O canto da página afaga-me os dedos, em tentativa de apaziguar o caos e a turbulência, a emergência — não cura, não resolve, mas engana a solidão.

Acendo uma vela, na esperança de poder queimar tudo isto no final, como se o apagasse dentro de mim. Mas estaria a dizimar o que nunca chegou a ser, que poderia ter sido, mas nunca foi — e penso que assim continuará a ser: o horizonte sempre engolido pelas tempestades e maremotos. 

Deixo a vela acesa e viro costas, enchendo o copo; desta vez, de algo diferente. Talvez seja assim que se exorciza o mal pela raiz e não com técnicas modernas e materiais de vanguarda. Acabar com tudo, com o epicentro do sismo, o núcleo da célula, a estrela do Sistema Solar.

A cada gole, engasgo-me, e arde mais — é assim que se atiça o fogo. A tinta corre-me nas veias, alastra-se. Estou a incorporá-la no sangue e a extrair a humanidade para que me possa tornar em algo superior — em algo que conhece tão bem os sentimentos, mas não os sente. 

O espaço em branco começa igualmente a escassear. Sinto as folhas futuras e passadas arder no fundo do meu estômago.

É isto. É este o ritual. É assim que se exorciza o escritor, é assim que se liberta do mal do sentir e de o escrever — torno-me no escrito, com o papel em chamas nas entranhas e o espaço que fica sem espaço para escrever; torno-me no que escrevo, como escrevo e onde escrevo, com o último trago. Já não sinto, mas sei o que é sentir. Assim se faz a obra. Assim se faz o escritor.


SOBRE A AUTORA

Dália Rodrigues

Escritora, tradutora, revisora, editora, designer editorial. Desde sempre apaixonada por histórias e personagens que nos deixam desconfortáveis e finais abertos. Inspirada por tudo e por nada, por sonhos e pesadelos, pelo reflexo da água e pela sombra da floresta. Escreve desde que se conhece e conhece-se desde que escreve. Participa em várias publicações literárias online e físicas, principalmente com terror e poesia.