O Marido de Bridget Cleary

de Matilde Loureiro

 

Centímetro a centímetro, o gume deslizava, cada vez mais fundo até atingir aquele órgão delicado no centro do peito, ligeiramente à esquerda, cruzando a ruela entre duas costelas. A faca deslizava por entre as barras da jaula protetora e atingia o seu alvo. A camisa de noite começou a ensopar o sangue que o seu coração tentava bombear. 

Ela olhou-o nos olhos, de rosto distorcido pela dor e surpresa, como se lhe perguntasse «porquê?». O homem abanou a cabeça e recuou, deixando-a a arranhar a faca para a deslocar. Já sem forças, a mulher caiu, morta. 

O homem verteu o óleo da lâmpada pelo corpo dela e chegou-lhe o fogo da lareira, fonte de vida da casa gelada e pobre. Os vizinhos, seus familiares, acorreram, mas nada fizeram. A mulher ardeu. 

«Assim tinha de ser», afirmaram todos perante as autoridades competentes. A mulher, aparentemente, havia sido trocada. «Os seres que vivem para lá dos montes, que trocam as voltas aos peregrinos e que raptam crianças e donzelas», tinham sido eles a fazer a troca, segundo estas gentes. 

«Não havia outra forma de purgar a sua alma», clamava o homem. O juiz bateu o seu martelo. A pena, ainda assim, não pesou tanto quanto devia pesar, naquele homem que apenas purgava a mulher de seres malvados, que vivem para lá dos montes e no embrenhado das florestas.


SOBRE A AUTORA

Matilde Loureiro

Nascida no dia que iniciava um novo ano para os celtas, desde 1999 que completa invernos no nosso planeta. Ávida leitora desde que se lembra, seria apenas uma questão de tempo até as palavras naturalmente fluírem para o papel. Eterna curiosa, é autodidata nos mais diversos assuntos e procura sempre conhecer algo mais acerca de um outro.
Através da sua escrita, viaja no tempo, no espaço e no mundo, chegando a ser tão fingidora como o Poeta de Pessoa. Almeja a que os seus leitores viajem consigo e sejam tão «poetas fingidores» como ela o é.