O Meu Avô

De JP Félix da Costa

 

Desde que o meu avô morreu que o meu gato está diferente. Dantes, gostava de se deitar no parapeito da janela e dormir aquecido pelo sol. Agora, deita-se do outro lado da sala, onde a luz lança a sombra da urna onde guardo as cinzas do meu avô. A urna está por cima da lareira.

O meu marido não gosta da urna. Já me pediu, gentilmente, mais do que uma vez, para a mudar de sítio.

— Tira aquela merda dali!

Foi o meu avô que me criou. Nunca conheci os meus pais nem a minha avó. O meu avô é que me contou que eles não me queriam por eu ser especial — como ele me dizia que eu era para ele, a sua neta especial.

— Já te disse para tirares aquilo dali, foda-se!

O meu marido, por vezes, é um pouco insistente.

O meu avô esteve na guerra colonial, em Angola. Lá, matou muita gente. O mundo tinha demasiada maldade, costumava dizer, mas ele fizera a sua parte para remover alguma dela do mundo. Ele não gostava de homens maus.

— ‘Tás surda ou quê? Se não tiras aquela merda dali, tiro eu!

Estou entre ele e a lareira. O meu gato só olha. O meu marido não gosta do meu gato nem o meu gato gosta dele. Vejo-lhe a mão a fechar-se num punho. Vejo como esta lhe treme. Ergue o cotovelo, puxa-o atrás e bate-me com força no lado esquerdo do rosto. Com os nós dos dedos. A força projeta-me para trás e fico caída no chão, contra a parede. Sinto a cara molhada. Toco no nariz com os dedos e vejo sangue agarrado às pontas.

— Eu avisei-te. E isto vai mas é para o lixo!

O meu gato deu a volta e está agora entre mim e ele, de costas para a janela. Ataca. Com as garras e os dentes, arranha-o nos calcanhares. Ele assusta-se com a dor súbita e afasta-se para a beira da parede, do outro lado, para junto da sombra da urna. Esta perfura-lhe o tornozelo e arranca-lhe o tendão de Aquiles. Ele grita e tomba, com um joelho no chão. A sombra sobe-lhe a perna e atravessa-lhe a barriga, extraindo os intestinos pelo buraco. Ele cai sentado, sem apoio. Olha esgazeado para a barriga e tenta empurrar os intestinos de novo para o interior. A sombra continua a subir, entra-lhe pelo nariz e, de dentro para fora, faz os olhos saltarem das órbitas. Ele tenta gritar. A sombra, porém, entra-lhe pela boca e arranca-lhe a língua. Ouço o rasgar de tecidos. O partir de ossos.

A sombra, por fim, retrai-se à forma natural. O meu marido está tombado. Não respira. Acho que está morto.

 

***

 

Dantes, tínhamos três montinhos no jardim. Agora, temos quatro. O meu avô não gosta de pessoas más.


 

SOBRE O AUTOR

JP Félix da Costa

Apaixonado por livros desde o primeiro dia em que um lhe caiu nas mãos, JP (João Pedro) Félix da Costa tem nutrido o gosto pela escrita. Pelas circunstâncias da vida, esse caminho foi ficando perdido em fragmentos de textos e histórias que guarda para mais tarde terminar. Mais de quinze anos volvidos sobre a publicação de um livro juvenil, procura agora recuperar o tempo perdido e entregar-se às Letras para fazer o que mais gosta, dar vida aos mundos e histórias que lhe fervilham na imaginação, desde histórias para crianças a histórias do mais profundo horror.