O Número
de Joana Bastardo
Selecionar coluna cento e treze, criar função, duplicar, transladar para… para…
Pestanejou, perdido. Havia uma dor, algures. Desviou os olhos do ecrã, trazendo a mente de volta ao corpo em que nascera.
A dor intensificou-se, um latejar agudo no vértice do cotovelo.
Demasiadas horas na mesma posição, carne trilhada entre o osso e a madeira gasta da secretária — carne que, até há momentos, mal se lembrava de possuir.
Esticou o membro, restaurando a circulação do tecido em sofrimento.
Apercebeu-se de que havia também ruído.
Reconheceu o shhh do ar condicionado, que cuspia ar frio — tão bafiento quanto o que já preenchia o cubículo — entre tartamudos mecânicos.
Identificou o tac tac tac de centenas de dedos a baquetear milhares de teclas distribuídas por dezenas de teclados, em dezenas de cabines idênticas à sua.
Isolou o tic tic tic de um relógio analógico à distância, metrónomo e maestro, que os conduzia ao longo da melodia interminável de expediente. E havia ainda outro — um que não se atrevia a interpretar — mais fraco do que os restantes.
Mais contínuo, mais… antigo.
Com uma apreensão inesperada, tentou devolver a atenção ao computador.
Coluna cento e treze, função, duplicar…
A dor, contudo, não desaparecia. Pelo contrário, tinha passado de latejo a guinada, como se fosse um nervo descarnado que agora apoiasse contra a madeira.
Massajou a zona de ofensa, que se exacerbou antes de amenizar.
O tic tic tic e o tac tac tac continuaram, tão ou mais prova de vida do que o bater do próprio coração. Imaginou os teclados, uma vez mais, os cubículos intermináveis, e escarneceu da sua mente fértil.
Afinal, nunca os tinha visto — nunca olhara para lá do seu cárcere. Era pago para transformar números. Nada mais. Nunca se sentira compelido a olhar… até agora.
Crrr.
Um rangido súbito sobressaltou-o — baixo, mas próximo, e tão díspar do padrão sonoro nele enraizado que foi compelido a abraçar o tronco.
Talvez algo se movesse do outro lado da divisória?
O cabelo eriçou-se-lhe na nuca. Ocorria-lhe agora, pela primeira vez, que nunca ouvira nada dos seus colegas, além dos seus dedos. Nenhum movimento, nenhuma palavra — nem sequer um espirro.
Deu por si a traçar o pesa-papéis com os dedos, o toque sólido do ouro tornado uma âncora necessária.
Fitou o monitor, as colunas intermináveis, cujo conteúdo numérico lhe competia digerir e regurgitar — ocupando mais colunas, exigindo funções de mais, expelindo resultados já fora do alcance de qualquer interpretação.
Coluna cento e… Cento e quê?
Socou a cabeça de leve, como se pudesse fazer o número tombar para a consciência. Não devia ser tão difícil — nunca fora. Precisava do envelope que lhe chegaria no final do mês, e o metrónomo não permitia paragens.
Socou com mais violência, tentando entorpecer o ego de volta ao silêncio.
O efeito foi o oposto.
Em vez de silêncio, amplificou-se o ruído: shhh, tac, tic e aquele crrr que nunca ouvira e que agora parecia instalado no cubículo da frente.
Levantou-se, devagar, e esticou as mãos sobre a secretária, em direção ao tabique. Os dedos vacilaram em torno do contraplacado, antes de o agarrar.
Esticou-se — elevando calcanhares cujo peso duplicara, perfurando ar gélido com o topo da cabeça — e forçou-se a olhar.
O grito que soltou foi logo engolido pelo ranger infernal da engrenagem.
Não era um escritório, um piso, um edifício sequer.
Era uma roda monstruosa, da qual apenas via parte.
Uma roda com centenas, senão milhares, de raios que partiam do cubo e terminavam em centenas, senão milhares, de cubículos iguais ao seu.
E no interior de cada um?
Cadáveres. Presos à vida por contrato. Animados apenas do pulso em diante, condenados a digitar a eternidade. Exibiam olhos velados, lábios ressequidos, corpos mais enxutos do que as películas de madeira que lhes poupariam aquela visão diabólica.
Mas nenhum parecia capaz de olhar, imobilizados nas suas cadeiras por…
Atirou-se para trás, com um guincho.
Eram apenas cordas, no entanto, vermelhas como sangue, enroladas à sua cinta. Empunhou o pesa-papéis e atacou as amarras, frenético. Tão frenético que não apreciou o som que se somou aos outros — o clac clac clac do cadeado dourado contra a cadeira em cada golpe. Tão frenético que não cessou até que a última fibra escarlate se rompesse sob os dentes aguçados, e a gravidade se apoderasse de si, puxando-o não para o chão, mas através do ar inerte, em direção ao que meia-volta da roda consagrara como seu destino.
Apenas mais um número.
Cumprida a sua função.
Transladado para outra coluna.
SOBRE A AUTORA
Joana Bastardo
Joana Bastardo nasceu em 1989, no Porto. Agora médica de família em Vila Real, escreve à margem do quotidiano — em minutos roubados e madrugadas insones. Autodidata, dedica-se à ficção literária e às múltiplas facetas do terror, com uma voz lírica e fragmentária que explora trauma, culpa e identidade. Encontra na escrita uma forma de exorcismo — e de sobrevivência. Entre os seus projetos, destacam-se Linha Vermelha, romance de terror psicológico sobre uma futura cirurgiã em colapso, e Tarot Literário, jornada não linear de uma alma condenada, ao longo de 22 microcontos inspirados nos Arcanos Maiores.