O Que a Terra Esconde

de Maria Varanda

 

O perfume a decomposição e evos passados consumia a noite com avidez, a mesma com que o mar indomável engole longas extensões de areia, numa praia por descobrir. O ar fresco, salpicado pelas primeiras neblinas do outono, com o estalar das folhas em mudança de cor, densificava com o aroma a solo húmido revolvido.

A terra caindo sobre si mesma, violentada pela lâmina de ferro, produzia um ruído surdo que ecoava pela neblina, fazendo estremecer a caveira de uma pequena raposa, despertada do seu longo descanso.

A brisa era uma velha amiga, tocando o osso em vez da densa pelagem vermelha que a cobrira. Há muito que fora desprovida de carne, mas agora, despertada da escuridão da sepultura, os seus olhos vazios perscrutavam em redor, iluminados pelo amarelo trémulo de uma candeia pousada perto. 

A luz refletia na lâmina, projetada para baixo e para cima com os movimentos da pá que remexia a terra, até então esquecida naquele espaço habitado por nenhum homem. Um, porém, segurava o cabo de madeira com determinação, ignorando a raposa, alheio à presença etérea de todas as coisas outrora vivas, como todos os homens são até eles mesmos conhecerem a terra. 

Um relógio pendia-lhe do bolso, seguro por uma corrente dourada, a passagem do tempo dançando com os movimentos do seu corpo. Era alto também, ainda mais aos olhos da raposa, e o seu cabelo era uma noite sem estrelas, sem luar. O corpo movia-se por baixo da camisa branca, desfraldada, e das calças seguras por suspensórios, a indumentária tingida pelo suor e por diferentes tons de vermelho líquido. Os dois fluidos misturavam-se, duas aquarelas a criar distintas tonalidades de carmesim.

O homem parou de cavar e içou-se para fora do buraco, apoiando-se na pá de ferro que segurava na mão direita, as botas enlameadas calcando a terra na moldura da sua obra. Determinando que a profundidade era suficiente, largou a pá a seu lado, a força do aterro propulsionando o seu improvável espectador. A raposa rolou pelo monte de terra, ficando de costas para o espaço que antes lhe servira de descanso, à descoberta de um segundo par de olhos.

A mulher parecia encará-la, mas tudo acontecera demasiado rápido, e com uma violência extrema. Ainda era cedo para que pudesse assumir a sua nova consciência. A visão que a raposa tinha era algo que, em vida, não teria entendido, mas a passagem de plano dotava os passageiros de uma outra capacidade de compreensão.

A visão que a raposa tinha era, assim, horrível.

A mulher jazia na terra húmida e no musgo, com a pele destituída de brilho. O saiote fora enrolado até à raiz das coxas, mutiladas com marcas de dentes, pintadas do mesmo fluido que conspurcava as vestes brancas. Sangue sobre neve. Tinta numa tela. 

A blusa de algodão, de tecelagem fina, fora rasgada expondo o tronco e um dos seios. A pele, antes imaculada, havia sido marcada com a força de mãos, unhas e dentes. A terra, por sua vez, também tinha deixado os seus vestígios, e o cabelo, algum dele separado da pele, caía em mechas húmidas e emaranhadas.

A raposa viu o homem primeiro pelas botas, aproximando-se do corpo da jovem. Levando os braços em redor, içou-a, afastou-se novamente, de retorno à sepultura, e se a raposa ainda tivesse orelhas, as pequenas parabólicas ter-se-iam virado no sentido do som do corpo a cair na terra. Impedida de fugir, fez-se testemunha. Da pá novamente a descer e a subir, cortando o ar no movimento. Do baque surdo da terra a cair, primeiro em algo suave e depois sobre si mesma. A floresta estava em silêncio, nada se atrevia a testemunhar vida, como se todos os pequenos seres soubessem que o mal ali caminhava, entre as árvores. 

Passos na sua direção. As botas a marcar terreno. E, de súbito, calor e humidade. Elevada da terra, a raposa agora olhava de frente para o homem. O olhar dele era mais negro do que o cabelo, numa cor que não pertencia ao mundo que a raposa conhecera. As suas mãos limparam a terra de cima do branco ósseo, e partículas de solo colaram-se ao suor e ao sangue. Os lábios dele, finos e rosados, pareceram sorrir. 

O homem caminhou de volta para a sepultura, ajoelhou-se e pousou a raposa na sua nova cama de terra. Ela sabia que a mulher estava uns centímetros abaixo. Conseguia sentir-lhe a confusão, a revolta. A tristeza também. Mais tarde, poderiam falar. Demoraria algum tempo, até a carne começar a desaparecer com a amargura da passagem. Poderiam conhecer-se. Sentir-se menos sós. A raposa passara demasiado tempo na solidão. Era bom ter companhia.


SOBRE A AUTORA

Maria Varanda

Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.

A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».

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