O Segredo do Mar

de Patrícia Sá

O cantar mais doce atravessara-lhe os ouvidos e o coração. Tinha deixado de ouvir o mar e as gaivotas. A praia tornara-se uma imagem escura e turva. O único ser iluminado e nítido fora a bela mulher com guelras no pescoço fino, cabelos negros sedosos como algas, e escamas que brilhavam ao longo do corpo. Os olhos tinham-se fixado em Manuel com uma força que lhe aprisionava a alma.

O que te vou cantar nunca podes revelar, melodiara a sereia. Vais conhecer o segredo do mar…

Estava naquela praia outra vez, vinte antes depois, a segurar a mão da filha. Nuvens cinzentas cercavam o céu.

— Pai, porque é que querias tanto ir à praia hoje? Parece que vai chover.

Manuel sorriu.

— Tenho uma promessa a cumprir.

Levou Carlota pela mão até ao mar. Era a primeira vez em muito tempo que pai e filha passavam tempo juntos. Quase conseguia ver a pequena Lotinha na sombra da filha.

— Está fria! — gritou Carlota, tentando afastar-se quando a água lhe roçou os pés. Manuel segurou-lhe a mão com força.

— Anda.

— ‘Tás maluco? Larga-me! Já te disse que não quero ir! Para! Pai! O que é que estás a fazer? Aqui não há pé! Pai! P…

Sobre as ondas, bolhas dançavam na superfície. Carlota tentava libertar-se, batendo e pontapeando Manuel. Nada o demovia. Mergulharam fundo, fundo, cada vez mais fundo. Carlota olhou o pai com fúria e lágrimas que se misturaram no mar. Pareceu-lhe que ele nem precisava de respirar. Carlota deteve-se quando o viu abrir a boca. E cantar.

Era uma melodia estranha, cheia de sons humanamente impossíveis. Atravessou o crânio de Carlota e prendeu-a num transe.

De repente, também não precisava de respirar.

Estaria morta?

Nisto, viu uma figura luminosa nadar na sua direção. Era uma mulher tão bela que a derreteu por dentro. Cantava aquela melodia, também. Carlota sentiu as pálpebras enfraquecer enquanto os sentidos eram assolados pelo dueto fantasmagórico. Uma sensação de calma preencheu-a. Nem reagiu quando a mulher abriu a boca afiada e se lançou sobre ela.


SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.