O Tempo das Descobertas

De Telmo Gomes Amaral

 

Aquele era para Adolfo o glorioso tempo das descobertas. Junto à sua aldeia, havia um lago, e dizia-se que, para o sul, era possível chegar através da água a sítios peculiares, sítios com pessoas azuis. Poucos se aventuravam a perder o pé nas águas do lago Atlas, mas Adolfo herdara conhecimentos que justificavam a sua ambição. Quando era pequeno, mandava na aldeia um homem vindo do Sul chamado Ahmed, de quem ouvira ideias para construir um tipo de bote de madeira com uma vela triangular, bem como noções sobre ventos e astros que permitiriam navegar o dito bote através do lago sem naufragar.

Junto a um ribeiro a que os locais chamavam Estago, Adolfo erigiu uma cabana que se tornaria a sua oficina e estaleiro ao longo de um ano. Aí, experimentou obstinadamente com diferentes combinações de madeiras, tipos de pano e resinas, testando cada iteração do seu invento nas águas relativamente tolerantes do Estago. Um dia, por fim, entendeu ter aperfeiçoado aquilo que queria. Carregou o batel revolucionário com mantimentos, um cobertor e uma faca grande e zarpou do ribeiro que desaguava no lago ameaçador, sem saber se ou quando voltaria.

 

*

 

A natureza do lago era tal que as mais pequenas ondulações sacudiam o bote de Adolfo, com uma violência que facilmente afundaria embarcações menos sofisticadas. Qualquer que fosse o rumo escolhido (e era o sul que Adolfo queria), o lago parecia sentir aquela unha estranha que o sulcava, logo respondendo com ventos e correntes no sentido contrário. Se uma estrela era escolhida para auxiliar a navegação, rapidamente desaparecia atrás de nuvens vindas do nada. A passagem do tempo resultava distorcida por estas contrariedades, e tornava-se difícil distinguir horas de dias inteiros, e dias de semanas ou meses. 

Foi assim que, tendo por único calendário uma barba que se tornara longa, Adolfo avistou certa noite uma fogueira muito ao longe, numa margem que começava a desenhar-se no horizonte. A margem das terras do Sul.

 

*

 

Adolfo atracou numa zona escondida da praia, e o seu primeiro instinto foi procurar uma pedra, gravar-lhe à faca uma cruz e plantá-la na areia, reclamando secretamente aquela margem para si. Depois, pôs-se a rastejar, de forma a aproximar-se sub-repticiamente do fogo que crepitava ali perto. 

Um homem seminu, cuja pele à luz das chamas parecia quase azul de tão negra, abraçava uma criança também azul e apontava-lhe estrelas no céu, com palavras suaves e ternas ditas numa língua estranha. O homem chamava-se Azibo, e a sua filha, Adanna, embora Adolfo nunca viesse a querer aprender estes nomes. Afinal, o importante é que esta terra era agora sua, e queria regressar com algo que demonstrasse o valor da sua descoberta para lá do lago traiçoeiro. Um homem como aquele junto ao fogo, primitivo, mas bem constituído, poderia fazer na aldeia do Norte todo o trabalho pesado que Adolfo lhe exigisse, custando pouco mais do que água e feijão com arroz.

Adolfo surpreendeu Azibo pelas costas e levou-lhe a lâmina afiada ao pescoço, conseguindo assim levantá-lo e torcer-lhe um braço, para o empurrar aos solavancos na direcção do areal onde deixara o bote. Mas Azibo era ágil. Conseguiu libertar-se. No meio da luta que sucedeu na areia, a faca mudou de mãos, e Adolfo já não esperava sair dali vivo quando sentiu ao seu alcance a pedra gravada que deixara na praia. Azibo não resistiu a uma pancada forte na cabeça. Quando acordou, estava já atado e amordaçado na proa da embarcação.

Ao longe, junto ao lume, Adanna chorava em desespero. Adolfo, primeiro, plantou novamente na areia a sua pedra, agora adornada com sangue estranho. Depois, avançou arfando na direcção da menina, para se ocupar dela. As adversidades que enfrentara para ali chegar vivo investiam-no de certos direitos.

 

*

 

Do regresso, que pareceu mais longo ainda do que a ida, Adolfo recorda até hoje a fúria redobrada do lago. A meio caminho, com o bote cheio de água e quase a afundar-se na tormenta, nada mais restava para atirar borda fora senão o próprio Azibo. Na ânsia louca de salvar ao menos uma prova palpável da sua descoberta longínqua, ocorreu a Adolfo livrar-se do corpo do seu refém, mas conservar-lhe a cabeça.

Azibo acordou dum torpor exausto com a faca do outro já meio enterrada no pescoço. Horrorizado, encontrou forças para se contorcer, erguer-se e atirar-se à água raivosa e opaca.

No mesmo instante, a tempestade morreu, e o lago tornou-se tão estático e transparente que Adolfo quase perdeu o equilíbrio: dezenas de metros abaixo de si, via o fundo do lago, tão nitidamente como se o bote flutuasse no ar. Algures entre o bote e o fundo, o corpo ferido de Azibo descrevia uma espiral de sangue, atraindo de todas as direcções enormes peixes nunca vistos. 

 

*

 

Qual a mecânica da justiça divina, acaso exista? Ninguém sabe. Fadas e demónios são feitos da matéria dos sonhos e do descanso eterno. É bem provável até que sejam uns e outros a mesma coisa, diferentes só no nome consoante o sonhador e o propósito. 

Perto do fim, Adanna avistara contra o fundo de estrelas uma criatura alada tão bonita como recordava ser a sua mãe. Pedira-lhe: «agarra-me nem que seja pelos cabelos e leva-me para longe daqui». 

Adolfo, esse, seguiu a sua vida e, desta viagem da juventude, a ninguém conta o lado podre. Porém, para ele, a criatura alada não é bela nem traz alívio. Aparece a meio das noites e carrega-o através das nuvens até àquela margem escondida no Sul. Puxa da areia, pelas raízes dos cabelos, o corpo intacto da menina a quem Adolfo roubou o pai, a inocência e a vida e arreganha os dentes serrilhados de peixe macabro, ainda sujos de sangue. Depois, leva-o de volta para o seu quarto na aldeia do Norte, enquanto lhe sussurra ao ouvido coisas numa língua mineral que os ossos entendem. Este é ainda, para Adolfo, o tempo das descobertas.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


 

SOBRE O AUTOR

Telmo Gomes Amaral

Telmo Gomes Amaral nasceu no Porto em 1971 e por lá estudou engenharia. Descobriu o DN Jovem ainda a tempo de contribuir com uma mão-cheia de contos e, anos mais tarde, participou com microcontos na revista Minguante. A engenharia tem-lhe servido para viver em cidades onde não fica. De momento, trabalha em Berlim e, no tempo livre, gosta de participar em encontros da comunidade Shut Up & Write! e em desafios informais de microficção. É quando escreve que mais aprecia ouvir música. Na verdade, suspeita de que são as próprias músicas que acabam por lhe escrever as histórias.