O Último Halloween

de Célia Correia Macedo

 

É noite de Halloween. Figuras grotescas, vagamente copiadas do imaginário de filmes de terror, inundam as ruas de uma cidade pacata. O ruído que se faz ouvir pelas portas escancaradas, casa sim, casa não, roça o ensurdecedor. Uma mistura de música alta e alvoroço das celebrações que marcam a única noite do ano em que os humanos exibem com orgulho a sua metamorfose.

Sempre desprezaste esta noite. Repudiavas as pobres almas ingénuas que desconhecem o que se esconde na escuridão. As mesmas que ignoram a existência de seres sombrios que dispensam máscaras de plástico, os monstros que só se dão a conhecer antes de um ataque impiedoso. 

Se vocês sonhassem…

Desprezo à parte, para ti, sempre foi uma noite especial. Era a única em que te permitias sair do teu refúgio e caminhar altivo por entre humanos, sem que a tua verdadeira natureza te denunciasse, sem que precisasses de ocultar os olhos raiados de sangue ou o sorriso de caninos afiados. Eras mais um entre os zombies, os lobisomens, as múmias, ou até entre os que se atreviam a vestir a pele de um dos teus, como vampiros por uma noite. A tua «máscara», porém, nunca voltava esquecida para o fundo de um armário para reaparecer no ano seguinte. Acompanhava-te todos os dias.

Hoje, a noite é diferente. Arrastas-te pela rua com uma dor incomportável, por entre uma multidão aberta de corpos quentes e expectantes. Estas são as criaturas que, mesmo na sua condição inferior de humanidade, são hoje, sem o saberem, teus predadores. Tu, real majestade das trevas, outrora a fonte de todos os seus medos combinados, caminhas agora debilitado, encurvado, qual animal indefeso… O esplendor com que te anunciaste mundo fora durante séculos esfumou-se num embaraçoso e grande nada.

Ela chegou com o silêncio velado que aprendeu durante o seu treino. Sabia o que fazia. Foi treinada para matar, para não hesitar. Ergues os olhos, nesse momento, e por um segundo parece ser a mãe dela, Sara, e não Lia, à tua frente. Deixas a estaca atravessar-te o peito.

Não sucumbes de imediato.

Em desespero, e consciente da fragilidade da tua existência, voltas o olhar para o céu estrelado, de mão a estancar o sangue que, mesmo assim, escorre pelo teu peito. Imploras à Lua como se ela te pudesse ouvir:

— Deixa-me respirar só mais uma noite, só mais uma…

Lia, de machete na mão, aproxima-se. 

Com a força que ainda te resta, estendes-lhe a mão. Ela hesita. Pela primeira vez, vê algo que a desarma: os teus olhos não são de fera, são de um homem cansado. E havia lágrimas — sangue antigo e amargo.

— Porque é que não lutaste? — pergunta ela, sem soltar a arma.

Tu sorris, fraco. Observas o pendente que Lia tem pendurado ao pescoço, o mesmo que viste no pescoço de Sara na noite em que te puxou pelo braço, na noite em que te salvou. Olhas para Lia.

— Esse pendente… era da tua mãe.

Confusa, Lia toca no pendente… e percebe. Não pela razão, mas por algo mais profundo. Um eco. Um reconhecimento impossível de apagar.

— Tu… Eras ele…

Eras.

És.

— Nunca deixei de te proteger.

É tudo o que dizes. A tua última confissão.

Lia não chora. Guerreiros não choram. Mas sente os olhos a marejar. A Lua assiste em silêncio. 

Nessa noite, enquanto as luzes brilham à distância, uma jovem mulher deixa um medalhão sobre um peito frio. E, por um instante, no mesmo mundo, são pai e filha.


SOBRE A AUTORA

Célia Correia Macedo

Célia Correia Macedo vive entre o barro e as palavras. Criativa das artes oleiras, dedica-se de corpo inteiro ao trabalho manual, mas é nas horas livres que se entrega ao imaginário sombrio do terror e do fantástico, onde a realidade dá lugar ao estranho e ao impossível. Inspirada pelos silêncios e mistérios do campo alentejano, onde vive, escreve como quem acende velas em noites de breu — por gosto, por inquietação e talvez também por pressentir que há mais histórias à espera de ganhar forma.

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