O Ventre

de Beatriz Cadete

 

Mal tinha passado da ombreira da porta quando o céu desabou num dilúvio aos pés de Magda. A ameaça contida nas nuvens enegrecidas decidira fazer-se sentir naquela hora, precisamente quando reunira a coragem para se desfazer de uma vez por todas dos sapatinhos de bebé.

Isto não me vai deter, isto não é um sinal para tentar outra vez, repetia para consigo, à espera de que as palavras se fizessem ouvir no seu âmago, ao contrário das súplicas atiradas em vão. 

Seguia com cautela pela calçada traiçoeira, ao ritmo ditado pelas mazelas do parto. Já duas vezes desde que saíra de casa sentira o chão fugir-lhe dos pés, fosse pelas tonturas ou pelo resvalar das solas gastas, que teriam de aguentar mais um inverno. 

Quando assomou ao cruzamento que dava para a praça principal, enveredou pela esquerda, em direção à modesta associação da Vila da Ameira. Era um casebre de madeira robusta, gerido pelos louváveis maridos locais que se revezavam quando era necessário prender algum forasteiro com mau aspeto ou um bêbado mais exaltado, exceto aos domingos à tarde, quando não cabiam todos atrás das grades. 

Antes de alcançar os degraus que a levariam ao destino, tinha ainda de passar pela fachada da igreja de São Fausto. Pela primeira vez em muitos anos, desde que chegara àquela terra, não entrou, não se benzeu, não atirou o mais fugaz olhar ao fantoche crucificado que se deixava avistar por entre os bancos vazios. Ninguém ia estranhar, nem os aldeãos mais devotos ansiavam sentir na pele o castigo divino que alagava os passeios.

Magda… 

A languidez do chamamento angustiava-a. O que em tempos lhe irrompera na mente como um clamor esfaimado parecia agora afastar-se.

Foi acometida de um delírio febril, de tal ordem que apenas voltou a si quando os passos nos degraus de pedra foram abafados pela palha à entrada do casebre. Os sapatinhos pesavam-lhe agora no bolso, como que a relembrá-la do que ali fora fazer. Deslizou a mão até ao bolso e, ao sentir a orla enrugada do atilho, fechou os dedos sobre o pequeno embrulho. Retirou-o com cuidado, lançando-lhe um olhar inconsolável antes de o depositar no cesto das contribuições para o inverno, onde se contavam mais terços abandonados do que meias de lã. 

O sino da igreja bradou as seis horas. Magda apressou-se a abandonar a divisão. A chuva não parecia dar tréguas, mas não havia tempo a perder. No auge do desespero, deixara a sala em estado de sítio e, apesar de o marido se desdobrar em longos serões para comprar uma alcofa quente para a menina, não tardaria a chegar a casa. 

— Ele que se dane também.

O sussurro não tinha acabado de lhe escapar dos lábios quando o pé resvalou e o corpo obedeceu ao apelo mordaz da terra. Deu por si de joelhos no chão, com as grossas mechas de cabelo ensopado a colarem-se às faces. Usou a mão latejante que lhe amparara a queda para afastar as madeixas dos olhos. Uma poça de água turva que se formara numa cova do passeio ofereceu-lhe um retrato distorcido de si, mais macabro, carcomido pelo negrume que se vincara debaixo dos olhos e nos cantos da boca. A frustração atingiu-a como um golpe seco nas entranhas. 

Ergueu-se com esforço, a lutar contra o clarão que a impedia de ver o caminho, e acelerou o passo enquanto o sangue lhe escorria pela malha coçada das calças. 

Não lhe restava muito tempo para deixar tudo em ordem antes de Lúcio regressar. Ainda tinha de lhe contar que a menina morrera. Talvez não lhe custasse tanto desta vez. Quem sabe se, lá no fundo, até já imaginava que pudesse voltar a acontecer. Desgraçado, não sabia de nada. 

Regressando a casa, Magda colocou o jantar ao lume antes de se precipitar para a sala, engolida pela escuridão. Com as cortinas corridas, nada parecia fora do normal. Acendeu uma vela em cada canto e obrigou-se a encarar que tudo permanecia no mesmo sítio, que a sua sina não havia mudado. As chamas trémulas desenhavam contornos fugidios nos olhos fechados da menina. Os lábios entreabertos conferiam-lhe uma expressão de paz, a contrastar com a palidez fantasmagórica do rosto. Os pezinhos descalços jaziam no centro do altar, inchados onde a corda os apertara um contra o outro. Nessa manhã, Magda aguardara que a taça de metal recolhesse aquele que era o sangue do seu sangue, que jorrara até à última gota sem que, mesmo assim, satisfizesse o seu mestre.

Magda… 

O apelo ecoou dentro de si como um suspiro débil. E sabia que era o último. Não podia permitir que o véu se levantasse para sempre, que se fechasse sobre si e a condenasse à podridão abjeta da mortalidade.

De súbito, ouviu-se o ranger da porta da cozinha, acompanhado pelo sibilar das chamas contra uma rajada de ar gélido. Com um leve sorriso, Magda arrancou o punhal do altar. E lançou-se a cumprimentar o marido.


SOBRE A AUTORA

Beatriz Cadete

Fascinada pelo oculto ainda antes de ter aprendido a escrever, nasceu em março de 2001. Ao longo dos anos, foi encontrando nas bruxas, nos magos e nos exorcistas a companhia ideal, bem como o refúgio de todas as horas. É tradutora de alemão e inglês e revisora de textos, com um amor incurável por ficção sobrenatural. As suas grandes inspirações são Mário de Sá-Carneiro, Lovecraft e Ira Levin. Reza a lenda que tem um canal no YouTube para divagar sobre as suas obras favoritas.