O Vulto Negro

de Sónia Cebola

 

Era apenas uma criança.

Uma criança que não queria dormir.

Uma criança que tinha medo do escuro.

É normal — diziam. — Todas as crianças têm medo do escuro. Faz parte.

Será que faz?

Uma noite, já adolescente, acordou com um peso aos seus pés.

O gato, pensou.

Abriu então os olhos e viu um vulto de um homem sentado na sua cama.

Tinha um semblante negro como o breu. Era alto e imponente.

Ela susteve a respiração.

O homem voltou-se para ela. Levantou-se. Começou a andar em direcção aos cortinados e desapareceu.

Os cortinados… O local onde, todas as noites, via aquele mesmo vulto a espreitar — e pensava, e desejava, que fosse um sonho.

Como naquele momento.

Imaginei. Só pode ser!

Ligou a luz.

Olhou para os pés da cama.

Havia uma marca no edredom. Uma depressão bem visível onde o vulto se tinha sentado.

Não foi um sonho! Não imaginei!

Apagou a luz. Escondeu-se debaixo do edredom. Como fazia todas as noites que acordava com a sensação de estar a ser observada, e via de soslaio o vulto negro atrás dos cortinados.

Ficou enrolada no edredom. Fez força para adormecer.

Que seja dia depressa! Que venha a luz, por favor!

Quem era este vulto que a assombrava, este homem que a perseguia?

Durante a adolescência, tornou-se habitual aquela sensação, a figura negra atrás dos cortinados, o peso aos pés da cama. O vulto até se foi tornando mais ousado, passeando às vezes pela sua casa…

E o tempo foi passando.

 

*

 

É já em adulta que decide tentar perceber e ultrapassar alguns dos seus medos e traumas. Resolve experimentar a hipnose.

É levada, assim, até uma outra vida.

No campo.

Casada.

Tinha um filho bebé.

E era feliz.

Trabalhava com ervas e fazia mezinhas às escondidas. Porque era proibido.

De repente, sente-se agarrada.

Um grupo de homens segura-a e leva-a para perto de um buraco fundo que alguém escavou.

Ela grita. Chora. Mas eles não a largam. Atam-lhe as mãos e prendem-lhe os pés. Até que ouve uma voz rouca e profunda.  Não entende o que diz, mas sente o corpo congelar ao ouvi-la.

Olha em frente e vê quatro homens, como juízes, a decidir o seu futuro. Entre eles, estava o que falou. Alto e austero. Vestido de negro.

E ela reconhece-o! Era a figura negra que a observava todas as noites quando era criança! Que se sentava na sua cama quando era adolescente! Era ele!

O homem aproxima-se dela e começa a bater-lhe com uma vara.

Os outros seguem-no.

Sente a vara a bater-lhe no corpo. Quer proteger-se, mas não consegue. Quer fugir e não é capaz. Pede-lhes que parem. Só quer que a dor acabe.

E eles continuam a bater-lhe. Com varas. Com pontapés. Com ferros…

Sente os braços a partir.

O «vulto» empurra-a para o buraco. Tão fundo como parecia. Tão fundo que ela parte as pernas ao bater no chão.

Grita numa dor insuportável, e ao olhar para cima vê-o lá. A ele. A fitá-la.

Subitamente, ouve um choro…

No topo do buraco, a figura negra pega no filho dela pelos pés. Começa a rasgar-lhe o pequeno peito com uma faca.

O bebé esperneia! Grita! Sangra!

O homem atira-o para junto dela, como se de entulho se tratasse.

Os gritos dela enchem o buraco. Quer abraçar o filho, mas não pode. A dor atravessa-lhe o corpo, a alma e o coração.

É aí que acorda. Sobressaltada. Em choque com o que reviveu.

O vulto negro era real!

Não sabia se era uma memória ou um fantasma.

Ou alguém que a matou numa vida anterior.

Que agora a segue.

E observa…

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE A AUTORA

Sónia Cebola

Nasceu em 1978, em Lisboa. Tem uma enorme paixão pelo mistério, esoterismo e magia. Desde cedo se apercebeu que via e sentia mais do que as pessoas que lhe eram próximas. Agora, decidiu escrever e partilhar as suas histórias.