Obscenotuário
de A. M. Catarino
Obscenotuário
Frederico Armando Servulo
6 de Junho de 1966 – 13 de Abril de 1996
Frederico Servulo passou pela vida como um escarro na calçada: conspurcou os sapatos de todos aqueles que tiveram a infelicidade de o pisar.
Apagado, servil e apatetado, foi vítima de bullying mal deu entrada na escola primária, altura em que, pela primeira vez, lhe foi permitido abandonar o galinheiro onde os pais o tinham criado.
Uma aura de maldição cresceu em redor da criança sitiada no canto da sala, à espera do ataque do próximo incauto agressor. Inicialmente, ninguém se deu conta dos insólitos desastres que aconteciam a quem se metia com o amorfo infante — o jovem Frederico viciara-se na surpresa do predador, no momento em que, consternado, descobria que se transformara em presa. Assim se deixou reprovar, ano após ano, à espera da próxima turma de colegas mais novos, plena de oportunidades de sevícias e humilhações sobre a sua pessoa.
Entretanto, Frederico perdeu os pais de forma trágica, no despontar da adolescência: o telhado do quarto caiu-lhe em cima, esmagando-os. Seguiu-se um macabro desfilar de acidentes e bizarras ocorrências a todas as assistentes sociais, famílias de acolhimento e funcionários de orfanatos que se atravessaram no caminho do jovem, situação que se arrastou até lhe ser permitido viver sozinho no que restava da casa dos pais, por despacho administrativo.
Tornado famoso pelos seus infames talentos, foi levado ao colo até ao término da escolaridade obrigatória, o que não o aborreceu por aí além: até os monstros se cansam da mesma dieta, após algum tempo. Os professores davam-lhe sempre a nota mais alta, os colegas deixaram de o importunar e as raparigas não resistiam aos seus avanços — era preferível uma execrável noite no casebre de Frederico ao horrível fim de todas as moçoilas que o rejeitaram e humilharam.
Abandonada a escola, o senhor Servulo (como passara a ser tratado) criou um conjunto de hábitos que lhe valeu a animosidade geral: não pagava nos cafés, supermercados e restaurantes que frequentava, embora ninguém se atrevesse a enfrentá-lo. E por uma boa razão: todos os que lhe apresentavam a conta viram abrir-se o chão debaixo dos pés, foram esmagados por candeeiros ou colhidos por automóveis, que entravam pela montra após uma inexplicável avaria mecânica.
A blasfema nave de carne, sangue e linfa de Frederico Servulo teria prosperado indefinidamente, se não fosse por um admirável acaso que o levou em aventura à capital do país.
Como escreveu F. Scott Fitzgerald, o problema dos maus condutores é que, mais cedo ou mais tarde, se cruzam com outro mau condutor.
O amor não é aconselhável aos ditadores cármicos, e, para mal dos seus pecados, Frederico Servulo apaixonou-se por criatura idêntica, só que mais experiente, maquiavélica e astuta.
Convidam-se vítimas, amigos e familiares de vítimas, curiosos ou qualquer pessoa com um mínimo de bom senso (não vá o poder estender-se além-túmulo, e as ausências serem encaradas como afronta), a assistir ao momento em que as cinzas de Frederico Servulo serão espalhadas ao vento, no Obscenitério dos Benditos Amaldiçoados, na próxima sexta feira às 13 horas.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
A. M. Catarino
A. M. Catarino gosta de se definir como sociólogo de formação, formador por vocação, fotógrafo por paixão e escritor por natureza.
É autor de variadas obras literárias e fotográficas, tanto a nível individual como coletivo.
Recebeu diversas distinções e galardões, dos quais se destacam o Prémio Internacional Books & Movies 2017, com o conto «Panteão», e o Prémio António de Macedo 2024, com A Desaparição de Jéssica Canhoto.
É possível saber mais sobre o autor em www.amcatarino.com.