Onde o Homem Implora e o Anjo Chora
De Marcos D. Mateus
Foram precisos sete dias para convencer o mar a vomitar os corpos.
Encharcado na areia, e de olhos cansados a navegar a ressaca das ondas, passou dias de angústia a rogar ao seu anjo da guarda para acudir aos desaparecidos na faina. Eram três os seus filhos que lá andavam, quando foram assaltados por um temporal que chegou sem se anunciar. Por sete dias, rugiu a tempestade que arremessou os barcos contra as falésias, reclamando-os depois para o leito marinho da morte.
Sete dias rezou e clamou, até ver os corpos espraiarem-se no areal, desgraçados, como que mastigados pelo Leviatã. E, ao oitavo dia, batido pelas vagas do desgosto, largou a mão do seu anjo e deixou-se cair de um precipício, também para o mar, acreditando ir ao encontro da alma dos filhos, algures nas profundezas.
* * *
Cercado por antigas muralhas, um cemitério repousa no cimo da encosta que se despenha no oceano. Alberga antigos moradores, quase todos gente do mar.
Há nele uma porta de ferro que guarda um jazigo sem janelas, um sarcófago selado onde a luz não entra nem de onde as trevas conseguem sair. Lá dentro, numa recâmara umbrosa, um poço cai a pique pelas entranhas da terra, até ao abismo que se esconde debaixo das águas. Ali, o longínquo eco das ondas dilui os gemidos que escoam das almas, entranhadas de solidão.
Ladeiam a entrada desse jazigo, que se diz amaldiçoado, duas sentinelas mudas, embutidas no sepulcro como se dele emergissem, ambas escondendo o olhar. De um lado, permanece um anjo, de costas para o mundo e prostrado contra a tumba, envolto num manto de pedra que o esconde da cabeça aos pés. Do outro, um homem petrificado mantém-se de costas para o mausoléu, enfrentando os visitantes com olhos ocultos pelo capuz da túnica.
Acima das águas sinuosas, junto à porta do jazigo onde a carne virou pó e os ossos secaram, o anjo esconde o rosto e chora a morte dos seus moradores, há muito esquecidos, enquanto o homem sem olhar implora ao visitante que da morte resgate a sua memória, que relembre os seus nomes, que eleve a voz para por eles rogar de novo aos céus.
Ondula o mar no horizonte caído, dia após dias, espraiado no tempo, enquanto aquele anjo chora o destino dos seus irmãos, nascidos de uma natureza corrompida, e o homem implora pelo salvamento do naufrágio no eterno esquecimento.
Quem outrora teve o sopro da vida é ali apenas um escrito, em pedra cinzenta, tingida pelas décadas. Por vezes, no entanto, onde o homem implora e o anjo chora, o silêncio do lugar dos mortos é fendido por um canto de voz sem corpo, a emanar das paredes do túmulo que há muito guarda os quatro corpos devolvidos pelas ondas.
Escondam o rosto, homens e anjos,
como a Morte oculta a Vida num impenetrável manto
Lamentem quem já foi esquecido,
quem aqui jaz abandonado, entregue a tão triste sorte
Elevem da terra súplicas,
pelos séculos dos séculos, num silencioso pranto
E esperem pelo derradeiro Fim,
quando a Vida se erguer para engolir a Morte.
Poucos conseguem ouvi-lo, antes de ser levado pelo vento que fustiga as encostas, para se perder, como tantos, na agitada voragem do mar.
SOBRE O AUTOR
Marcos D. Mateus
Nascido no Norte, a meio caminho entre as décadas de 70 e 80, começou a viajar ao passado em pequeno, levado pelas histórias que ouvia dos avós. Foi com eles que descobriu o interesse pela escrita. Atualmente, é cientista e professor no Instituto Superior Técnico. Sente-se, acima de tudo, um homem de família.