Os Gatos de Tornes

De Carlos Silva

 

Na aldeia de Tornes, os gatos comem às dezoito horas em ponto. Pouco lhes importa que ao longo dos anos, um a um, os habitantes tenham morrido de velhice ou migrado em busca de uma melhor vida, que as casas tenham passado a ruínas e de ruínas a alojamentos rurais para os turistas que vêm visitar as belas fragas de xisto. Às dezoito horas, lá estão eles no largo da igreja, miando a exigir que a comida lhes seja servida. Quem mantém o ritual são agora os comerciantes de lembranças e os donos dos cafés, que despejam no chão o granulado que compram de propósito no supermercado a mais de 40 km da aldeia. Os turistas parecem gostar. Brincam com os gatinhos, tiram-lhes fotografias, alguns até trazem comida, sabendo da tradição através dos guias turísticos.

Nas lojas de recordações, os postais de gatos, estatuetas de gatos, pantufas de gatos, abre-caricas de gatos, livros de gatos, e muitos mais bricabraques com temas felinos, foram gradualmente substituindo os produtos da região, como os queijos, licores e produtos de lã, que agora ocupam um cantinho envergonhado, destinado a satisfazer os poucos turistas interessados na ruralidade.

Através das cortinas rendadas, uma velha mulher, a última verdadeira habitante de Tornes, já que lá nasceu e vive, seja época alta ou baixa, observa todos os dias desde a sua meninice a hora de refeição dos felinos. Ela sabe, porque a mãe lhe contou quando era pequena e porque o viu vezes sem conta: gerações após gerações, os gatos de Tornes comem sempre às dezoito horas.

Esse é o ritual que ensinou à sua filha, e que a sua filha ensinou aos filhos dela, quando vinham visitar a avó pelo Verão e pelo Natal. Um dos netos da velha mulher chegou até a levar um filhote de gato para a capital, mas o animal arisco escapuliu-se ao fim de dois dias fechado no apartamento. Os gatos de Tornes não eram de ficar a dormir junto à lareira, nem de mijar em caixas de areia. As montanhas e as ruas apertadas de xisto eram o seu domínio, por mais que os humanos teimassem em chamar àquele local de seu.

O tempo passou e a filha e os netos da velha senhora visitam Tornes cada vez menos. Ora são as férias marcadas no estrangeiro, ora um deles fica doente, ora têm de visitar o lado da família do pai. E com a ausência deles, a aldeia fica um pouco mais deserta. Excepto pelos gatos.

Hoje é Inverno, o mais frio de que há memória. A neve cobriu as estradas, e o gelo ditou que os acessos à aldeia fossem cortados. Os cafés estão fechados, as lojas de artesanato e de lembranças sem ninguém para dispor as miniaturas de casinhas de xisto que os turistas levam para colar no frigorífico com um íman. O largo da igreja está sem os habituais autocarros, recheados de nacionalidades sedentas de conhecer o Portugal profundo… e claro, os gatos. Nem o posto de saúde (das poucas promessas eleitorais que o presidente da junta cumpriu) está aberto, por falta da enfermeira que hoje ficou em casa na vila vizinha.

São quase dezoito horas.

O sino da igreja avariou há mais de dois meses, mas os gatos sabem que horas são.

A velha mulher ouve os miados a aproximarem-se. Os gatos mais novos são os primeiros a chegar; logo atrás, seguem os veteranos. Sentam-se espalhados no largo, pequenas manchas de cor contra a neve branca e fofa. Todos olham para a única casa que sabem estar habitada, balançando as caudas na neve fria.

A velha mulher procura na despensa se ainda sobrou alguma ração. No escuro, tacteia até encontrar um saco esvaziado, que sacode, fazendo cair uns míseros três grânulos. De ouvido atento, os gatos sabem que ali há comida e dobram a intensidade do miar. A velha mulher fecha as portadas das janelas, mas sabe que de pouco serve.

Os miados tornam-se cada vez mais próximos da casa. Pelas frestas das portas e das janelas, olhos curiosos espreitam escuridão adentro. Dezenas de patinhas percorrem o telhado de xisto, em busca de uma fresta por onde entrar.

A velha mulher deita-se na cama com o terço entre as mãos. 

Ouve-se o som de pequenas garras a raspar contra a madeira. 

Uma telha de xisto desliza telhado abaixo, espatifando-se no chão.

A velha mulher encolhe-se na cama com o susto e ora a Deus que não a abandone, tal como fizeram a sua filha e os netos.

Os gatos de Tornes comem sempre às dezoito horas.

Seja-lhes servida comida ou não.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


 

SOBRE O AUTOR

Carlos Silva

Carlos Silva é engenheiro biológico e escritor de ficção especulativa. Tem obras no formato de conto e romance. Escreve ainda para banda-desenhada e cinema. É também fundador da Imaginauta, através da qual dedica grande parte do seu tempo livre à promoção da ficção especulativa em Portugal. Podem conhecer a sua obra em www.carlossilva.net.