Os Pombos

De João Porfírio

 

Desaferrolhou o trinco e abriu a porta. Deu dois passos em frente, passou as solas das sandálias pelo tapete de coco da entrada para não conspurcar o mundo. Sacudiu os ombros e, num relembrar de ensinamentos do seu professor, encheu os pulmões de ar para sentir o odor a esgoto típico do condomínio. Senhor da sua escolha, desceu os três lanços de escada. Saía do prédio pela primeira vez em duas semanas.

O ar parado do julho tardio quase o demoveu do intuito inicial. A folhagem verde e fresca da árvore que via da janela do 1.º andar estava inerte. Lá dentro, habitavam dois pombos de penugem branca. Arrendaram o carvalho no início da primavera e prometiam ficar até Artur fazer sacudir as folhas com o chumbo da pressão de ar. Na casa ao lado, café no rés do chão, residencial no piso superior, trabalhava Emídio. Dono do café, era mestre de cerimónias duas noites por semana e professor de ioga de Artur e de quatro velhas com domicílio fiscal na avenida.

A camisa de alças favorecia-lhe os sovacos, nascentes sudoríparas. Na zona da barriga, não havia salvação. O branco do tecido era trespassado na horizontal pelo âmbar traduzido pelo falso magro. Mais acima, uns salpicos amarelados de uma refeição apressada no dia anterior. Os calções bege e os pés encodeados e entrincheirados nas sandálias gastas poderiam escamotear as crostas de remelas pregadas no olhar notívago. Mas toda a gente já lhe conhecia a indumentária. Ninguém ligava. A avenida saudou-o diretamente rosto adentro, como se lhe quisesse testemunhar e enredar o intuito e o luto.

— Bom dia — disse o carteiro, que parara a carrinha para deixar a correspondência na vivenda da frente.

— Hum — grunhiu Artur. Dirigia-se sempre assim à primeira pessoa que o interpelava depois de tão longa hibernação.

O sol escondia-se para lá da folhagem do carvalho. Não havia sinal dos pombos. Não sabe se no dia anterior soltara o silvo de chumbo ou se apenas o sonhara. Olhou para os pneus do Opel Corsa e pensou em ligar ao mecânico para o vir desenrascar. Pensava isso de todas as vezes que encarava o velhinho automóvel que fora de seu pai. Mas, além dos pneus sem pressão, teria de lidar com a bateria descarregada. Azáfama demasiada que iria importunar a vizinhança. Podiam esperar: o carro, o mecânico, ele. Pensou novamente no professor. Encheu os pulmões de ar. O som de um breve estertor fê-lo tossir duas, três vezes, e formar uma bola de expetoração na boca. Pronto para a cuspir, olhou para um e para o outro lado da rua para confirmar a ausência de gente. O carteiro vinha na sua direção com um braço estendido: 

— Tem aqui uma carta para si. Correio azul — disse, tentando minimizar ao máximo o contacto com Artur, mais para benefício deste do que seu, reconhecendo-lhe a necessidade de maior introversão nesta fase da sua vida.

— Hum — respondeu no seu grunhido, desta feita justificado pela bola espessa que mantinha na boca.

Era uma carta de Teresa, sua companheira no ioga, uma senhora idosa, muito preocupada com a aversão social de Artur, sobretudo desde que lhe morrera a mãe, amiga de longa data de Teresa. Artur cuspiu finalmente a bola de expetoração para o tronco do carvalho. Pensava que aquele esgar de humidade poderia alimentar minimamente a árvore. Dos pombos, nem sinal. Ainda esboçou pegar numa pequena pedra para atirar à folhagem, mas reparou que os vizinhos da frente tinham o carro estacionado mesmo abaixo do verde imponente. Rompeu o envelope sem grande expetativa e começou a ler numa letra serifada:

 

Querido Artur, sentimos a tua falta nas aulas. Sei que estás no teu processo e que não há dois iguais no que ao luto respeita. Compreendo perfeitamente essa necessidade de solidão que te percorre o íntimo. Não sabia se havia de ir aí a casa ou se havia de te escrever. O mais certo é aparecer aí mais logo para te levar uma sopa. De qualquer das formas, se não o puder fazer, espero que estas linhas te encontrem bem. O professor de ioga disse-nos que te tem visto na varanda a fumar, mas que não te quer importunar. Também ele respeita o teu espaço e o teu tempo. Mais do que eu, por certo, que estou aqui danada para te levar o creme de cenoura que fiz para o almoço. Ainda passo antes nos correios. Escrever-te é, para mim, falar com a tua querida mãe. Por isso, perdoa o sentimento desta velha que te vê como o filho que não teve.

 

Artur acabou de ler a carta, voltou a folha para ver se havia mais alguma palavra da senhora Teresa. Nada. Guardou-a no envelope e lembrou-se da sua tarefa. O sol já se sobrepunha à folhagem quando resolveu volver à esquerda. Lembrou-se do motivo que o fez sair de casa. Entrou no café do professor Emídio. Este, pleno do estado meditativo de quem adivinha a ausência de clientela durante a manhã, estava sentado numa cadeira, de olhar voltado sobre si mesmo.

— Professor Emídio, está bom? — Artur tocou-lhe no ombro. Não sabia como o interromper sem o assustar.

— Artur… — O homem abriu os olhos lacrimejantes devido ao fluxo da primeira luz do dia. Meditara por longos quartos de hora, certamente. — Que bom é ver-te. Vens à aula mais logo?

— Ainda não sei. Tenho umas coisas para tratar. Se me despachar, vou — respondeu, sem fazer muita fé da simpatia do professor. — Preciso de gelo. Tem gelo na arca?

— Vais dar uma festa? — Os olhos reluziram-lhe ao ver que o aluno fazia um esforço para ultrapassar a morte da mãe. — Espera aí…

***

Artur subiu as escadas com um saco de plástico generoso com gelo. Colocou a chave na porta e entrou sem limpar os pés. Sentiu o aroma férreo do sangue a misturar-se com o do esgoto da escadaria. A água gelada lavaria do chão a alma e o sangue da saudade de Teresa. No fundo, queria deixar de partilhar um luto que era só dele.

Aproveitando a janela aberta, os pombos voaram na direção do carvalho. Fiz-lhes um favor, pensou.

SOBRE O AUTOR

João Porfírio

Nascido e criado na Beira Interior, na encosta da Serra da Estrela. Estudou Sociologia. Trabalhou na área durante algum tempo. No verão de 2022, mudou-se para a região de Aveiro. A escrita, os clássicos da literatura, a guitarra e a afeição pelos animais moldam o seu dia a dia. Trabalha para poder viver da escrita. Com um espírito proselitista, quer criar um Clube de Leitura na zona onde reside e trazer mais pessoas para esta paixão pela escrita e pela leitura — ambas necessitam de ser partilhadas para se assumirem reais.


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