Palhaço Triste

de Nuno Gonçalves

 

Entrei na casa de banho da estação de serviço apenas porque a alternativa era borrar as cuecas. Prometo, a mim mesmo e ao Universo, que nunca mais vou comer arroz de lapas.

Segui em passo rápido para um cubículo de porta entreaberta, sustendo a respiração para não sentir o cheiro a mijo estagnado. Abri a porta com o cotovelo. Sabiam que há mais de cinco mil espécies de germes em alegre reprodução por cada milímetro quadrado de uma casa de banho pública?

O meu intestino estava prestes a despejar-se quando a porta do cubículo se fechou atrás de mim. O tampo da sanita pintalgava-se de salpicos de urina que talvez nem pertencessem à mesma pessoa. Nas paredes de louça, repousavam restos de fezes já secos e incrustados. Ia tirar o desinfetante do bolso quando me ocorreu que não fora eu a fechar o cubículo.

Voltei-me e vi-o. Encostado à porta trancada, um homem alto abria um largo sorriso exagerado por maquilhagem desbotada. Estava vestido de arlequim. Num fato de losangos coloridos que lhe ficava curto nas mangas, meio roto e remendado, algo que talvez tivesse usado numa qualquer festa de Carnaval do ciclo.

Fez-me sinal para que me sentasse.

Ora, eu tinha duas opções, mas só uma me permitiria manter as calças limpas. Baixei-as e sentei-me. O tampo estava morno. Morno e húmido. Podia ter vomitado se as minhas vísceras não estivessem já entretidas a esvaziar-se pelo outro lado.

Durante o processo, não tive coragem de olhar para a cara dele. Fitava-lhe as pontas dos sapatos. Bons sapatos, apesar de um pouco gastos. 

Acabei o serviço, limpei-me, subi as calças sem nunca olhar para ele. Quando ia puxar o autoclismo, a mão do arlequim, de unhas roídas, surgiu no meu campo de visão. Fazia-me sinal para parar. 

Voltei a esboçar o gesto de carregar no botão do autoclismo. Ele repetiu o sinal e abriu a porta. Relanceei os meus dejetos que boiavam na sanita. Acabei por sair, passando por ele. Ouvi a porta fechar-se e o trinco a ser corrido.

Saí da casa de banho sem lavar as mãos.


SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).