Pé Morto
De JP Félix da Costa
Os passos eram apressados. Ouvia-os no corredor. A porta fechada mantinha as pessoas do lado de fora, mas não impedia o som de entrar. Era essa a memória mais antiga. O som dos passos. O ranger do soalho daquele edifício que sempre fora velho.
A seguir, vinha o cheiro a mofo. O bolor que se espalhava pelas paredes e pelos tetos altos. Pontos negros como a noite que ora se espalhavam ora se juntavam em manchas de diversos tamanhos. Recordava-se dos quartos grandes onde se perfilavam as camas. Quartos que eram bem maiores quando ali chegou. Deixara a mãe de agulha espetada, branca como a cal, gelada como o inverno, deitada em cartões no beco a que chamavam casa. Vagueara sem rumo por uma cidade que o ignorava. Por ruas frias e escuras onde estava só no meio de uma multidão que não o via. Acabou por ser recolhido, trazido para ali. O orfanato passou a ser a sua casa.
O gemer do soalho trazia-lhe memórias. Mais alguém passava frente à porta. Mas os passos de agora não eram como os de antigamente. Estes eram passos de pés pequenos, uns lestos, outros mais compassados. Recordava-se (como podia esquecer?) dos passos pesados. Daquele caminhar lento de um pé a ser arrastado. Aquele raspar da bota do pé inerte. A cada passo, seguia-se um rangido longo. A memória daquele som fê-lo arrepiar-se. Era o som que trazia o medo. Recordava-se de se cobrir com a roupa da cama. De tapar a cabeça e esperar que ele passasse. Até ao dia em que deixou de passar. O dia em que parou ao lado da sua cama e o levou para o quarto. A porta fechada não deixava ninguém entrar, mas deixava o som sair. O som que todos conheciam e que todos ignoravam.
Noite após noite, o arrastar do pé morto pronunciava os tormentos. Noite após noite, era levado para lá da porta do Inferno. Até à noite em que se soltou da mão. A noite em que correu mais rápido do que o pé morto. Em que subiu mais rápido do que o pé morto. A noite em que saltou do telhado. A morte era preferível àquela vida, mas essa porta estava fechada. No chão de pedra, estendido com a perna esquerda numa posição impossível, gritou de dor. Estava partida em três partes.
Foi tratado dentro de portas; não havia lugar para ele no hospital. O escândalo poderia vir a encerrar o orfanato.
A lenta e dolorosa recuperação manteve o pé morto à distância. Outros ganharam acesso ao Inferno, e ele foi poupado. Não porque a perna nunca mais lhe teve serventia, mas porque o tempo o transformara. Crescera, e o pé morto perdera o interesse.
Continuou a ouvir o passo e o arranhar da madeira, continuou a ouvir os sons abafados pela porta fechada, mas já não tapava a cabeça. Já ignorava, como os restantes. Com o tempo, o pé morto passou a vir na companhia de uma tosse cavernosa. Uma tosse de morte. Até não se ouvir mais o pé morto.
Agora, era parte do orfanato. Tinha ali a sua vida, o seu trabalho. Vira outros partir, mas, como ninguém queria adotar um aleijado, fora ficando até ser adulto. Até deixar de ser mais um órfão.
Levantou-se da cadeira. Apoiou-se na perda direita. A esquerda nunca sarara devidamente depois da queda. Abriu a porta. Durante o dia, tinham chegado novas crianças. Uma em particular chamara a sua atenção. Com a calma habitual, dirigiu-se para o dormitório dos rapazes. A perna direita avançava, arrastando a esquerda que raspava na madeira do soalho.
SOBRE O AUTOR
JP Félix da Costa
Apaixonado por livros desde o primeiro dia em que um lhe caiu nas mãos, JP (João Pedro) Félix da Costa tem nutrido o gosto pela escrita. Pelas circunstâncias da vida, esse caminho foi ficando perdido em fragmentos de textos e histórias que guarda para mais tarde terminar. Mais de quinze anos volvidos sobre a publicação de um livro juvenil, procura agora recuperar o tempo perdido e entregar-se às Letras para fazer o que mais gosta, dar vida aos mundos e histórias que lhe fervilham na imaginação, desde histórias para crianças a histórias do mais profundo horror.