Pescada
de Rita Santos
I
Com os primeiros raios de luz,
procurei a areia e,
com a velha máquina,
comecei a retratar
conchas e pedrinhas,
oferendas do mar.
Ouvindo um som,
lá ao fundo,
desconsolado,
larguei o papel de fotógrafo amador
e corri.
O canto era triste, suplicante.
Ela chorava à beira d’água,
porventura
arrastada pela corrente,
presa, numa rede,
a lamber as feridas.
A sufocar.
Ajudei-a a livrar-se do embaraço
e dei-lhe água do mar,
que sorveu
com os lábios sôfregos
de náufrago.
Peguei na criatura.
Metro e meio, peso pluma.
Desamparada.
Longe do lar.
Mirou-me com aquelas fendas negras
no lugar de olhos
a dizer «obrigada».
E tomei a decisão.
Vais para minha casa.
II
Sem temor,
envolveu-a numa manta
e na carrinha a levou.
Pelo caminho,
por ele ecoaram
sonhos de grandeza.
E prestígio.
E riqueza.
Pousou-a com cuidado
na banheira
de água bem cheia.
Com um suspiro,
a criatura desabrochou.
Observou-a bem.
Cara nova, sabedoria velha.
Com ar de mulher,
mas sem o ser.
Cabelo negro.
Comprido.
Ralo.
Pestanas longas
como as de um galgo.
Tetas fartas.
E rabo de peixe.
Brutalidades obscureceram o cérebro
do samaritano.
Agarrou-lhe nas mamas
e tentou pôr o sexo na boca dela,
mas, sentindo os dentes de tamboril picar,
não se voltou a atrever.
Foi buscar o rolo
para a imortalizar.
A criatura gritou, desesperada.
O flash da máquina magoava
uma vista habituada
ao fundo do mar.
Ele não parou.
Não enquanto não contasse,
em imagem,
a história extraordinária
que lhe aparecera
por acaso.
Deixou-a sozinha,
a chapinhar,
e foi comprar peixinhos dourados
para a acompanhar.
Ficou irritado
quando ela os comeu
de uma assentada,
qual cão inocente
que ao dono queria agradar.
Cedo percebeu
que o sorriso da sereia
era imitação
da sua própria feição.
Na casa solitária,
imaculada,
o salvador
tornou-se escravo
de cuidar.
Cansaço.
O mar pariu um desgosto.
III
Ao terceiro dia,
voltou a fazer a viagem.
Pegou num barco a remos
para a deixar.
A Lua brilhava.
Cheia de histórias para contar.
A criatura, até ali de trato dócil,
olhou para os céus e lamentou.
Berrou, estrebuchou,
ferrou as longas garras
no pescoço do salvador.
Pela face, escorriam lágrimas cristalinas.
Salgadas.
Não queria voltar.
Presa por um temor,
que ele não poderia adivinhar.
E narciso,
questionava-se:
Teria sido assim tão bom?
De mente feita,
quase hesitou.
Olhou para o corpo azul iridescente.
Procurou o conforto nas mamas,
uma última vez.
Ouviu os corações da bichinha sossegar.
Ela afrouxou.
E ele aproveitou.
Lançou a sereia ao ar.
O mais longe que conseguiu.
Convenceu-se de que benevolência tão grande
não voltaria a encontrar.
Foi então que,
sentindo um turbilhão nas águas
por baixo de si,
talvez a criatura a tentar regressar,
estacou, curioso.
Olhou até onde os raios de luz conseguiam clarear.
Ainda foi a tempo de ver a pobre ser engolida
por tentáculos enormes, gigantes,
num mero instante.
Um lamento horripilante
foi o último som que lhe ouviu.
Na água luminescente,
um olho colossal fitava-o.
Sereias desprotegidas, sensuais.
Monstros das profundezas, irreais.
Era demais para a sua lente limitada.
Seria a vingança da sereia?
Tinha de regressar a terra!
O rolo estava em casa,
por revelar.
Preso num barco que rodopiava sobre si,
nas águas mexidas dos mostrengos das histórias,
fugiu-lhe, sem querer, um remo.
Frustrado,
esticou o braço,
até a ponta dos dedos o alcançar.
Viu o olho curioso aparecer de novo,
nas ondas,
a sondá-lo.
Desequilibrou-se e caiu ao mar.
Num instante, desapareceu
nas águas turvas,
puxado pela besta das profundezas.
Antes, de ser devorado, porém,
ainda se martirizou num fugaz pensamento:
nunca devia ter trocado o papel de fotógrafo
pelo de pescador.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Rita Santos
Rita Santos nasceu em Lisboa, no ano da passagem do cometa Halley, e jura que um dia ainda vai escrever sobre a data. Quis ser desenhadora, arquiteta, pintora e uma mão-cheia de coisas mais. A constante? Cinema. Desde 2010 que mantém um blogue de cinema.
Ver 100 filmes de terror por ano é pouco? Experimentem ver mais com dois filhos e um trabalho full-time. Pois.
Hoje em dia, é formadora e consultora na área da criatividade. Publicou na H-alt, reviu textos para outros autores e agora dá os primeiros passos na publicação do seu mundinho negro.
Bem-vindos.