Piso -1

De Martim Maria Ramos

 

Aquele não era o piso -1, tinha certeza. A falangeta do dedo já doía de tanto premir o botão para fechar a porta. Tinha ainda de fazer o jantar, e havia horas certas para dar o remédio ao gato.

Talvez haja uma saída, pensou. Saiu e viu-se cercada por estantes e caixas de arquivo: um infinito burocrático que a luzinha do seu telemóvel ainda tentou medir, revelando apenas algo branco ao fundo do corredor, emergindo em forma de gente, sem ser gente.

Congelou. Até que ouviu o elevador a ascender. Correu até à porta e voltou a chamá-lo.

O cheiro a mofo anunciou a presença. Ela parou, olhou sobre o ombro, e os joelhos cederam à condição de presa. A figura esquálida, corcunda — onde os ossos quase rompiam a pele — olhou-a por duas pequeninas orbes pretas, tímidas e receosas. Os seus lábios carcomidos murmuraram:

— Já funciona? Podemos ir embora, por favor?


 

SOBRE O AUTOR

Martim Maria Ramos

Nasceu em Cascais, mas foi criado em Mem Martins. A mãe ensinou-o a respeitar os livros. A prima Catarina obrigou-o a gostar de terror — e ainda hoje não vê um filme sem uma almofada. A professora Antonieta, no terceiro ano, disse-lhe que poderia ser o que quisesse, mas que acabaria por ser escritor. Por agora, é geólogo, nas minas de Aljustrel, e é nas galerias escuras do submundo que tem as suas melhores ideias.