Pode Sempre Ser Pior

de Francisco Horta

 

Ainda tinha chocolate nos dedos quando o meu pai entrou na cozinha. Puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, mesmo à minha frente.

— Fostes tu, pequenote? — perguntou com um sorriso mais torto do que as palavras que lhe saíam da boca.

Mordi o lábio e escondi as mãos debaixo da mesa. Mantive-me calado.

— Fostes tu, pequenote, que comestes o bolo todo? — repetiu, e abriu mais o sorriso. Se o primeiro era falso, este era inegavelmente hipócrita.

Engoli secura e esfreguei os dedos uns nos outros, tentando transformar em pó os vestígios de chocolate. Em vão.

— Bom! — concluiu o meu pai, alto o suficiente para me fazer saltar da cadeira. — Não me ‘tás a dar outra escolha.

Levantou-se e vi-o ir até ao balcão da cozinha. Despejou azeite na cafeteira e acendeu o fogão com o isqueiro. Depois, virou-se para mim:

— Já os antigos diziam: o azeite traz a verdade ao de cima. 

Voltou a sentar-se na cadeira, desta vez ao meu lado, e sorriu de novo, mostrando-me todos os dentes, amarelos e desalinhados e ausentes, que lhe preenchiam ou deixavam por preencher a boca. Prosseguiu:

— Tens à volta de seis minutos, até levantar a fervura, para me dizeres se comestes ou não comestes o bolo todo. Senão, abro-te a boquinha e enfio-te o azeite até lá abaixo, até a verdade sair cá para fora.

Eu, sabendo bem do que o meu pai era capaz, não ia de certeza responder-lhe.


SOBRE O AUTOR

Francisco Horta

Francisco Horta nasceu em Vila Franca de Xira, em 1987, e foi criado na Subserra. Sonâmbulo, acordou diversas vezes na pedreira, para lá da serra. Durante o caminho de volta a casa, ouvia sussurros que viriam a inspirar as histórias que escreve. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa. Tem como principais influências Richard Matheson e Samanta Schweblin. Vive em Almada, com a mulher, a filha e o filho.