Prova de Vida

De Nuno Amaral Jorge

 

A bisa Joaquina era uma mulher invulgarmente robusta. Tinha uns olhos meio rasgados e dizia sempre que tinha uma avó vinda do Oriente, embora tivesse nascido no meio do Alentejo, perto de Monsaraz, muito antes de sequer se pensar na bacia do Alqueva dos dias de hoje ou na nova Aldeia da Luz. A bisa raramente transpirava, mesmo quando amanhava o seu grande quintal, com as suas galinhas, alguns porcos e um ou dois cães. Aos oitenta anos, ainda carregava sacos de mais de trinta quilos, e o viço invulgar testemunhava-se também na pele, muito menos marcada pelo tempo do que seria de esperar das suas oito décadas.

A bisa nunca «trabalhou», mas, como era óbvio, fartou-se de trabalhar. E também vendia os produtos da horta no mercado de Mourão. Toda a gente conhecia a Ti Joaquina, sempre acompanhada dos seus cães, afectuosos e obedientes. Ficou viúva relativamente jovem, perto dos sessenta anos e, como ela dizia, «nunca mais arranjou serventia para um homem lá na quinta».

A solidão nunca a atacou, e nós, como família, até estávamos bastante presentes, apesar da distância. A casa era antiga, mas, graças a toda a família, tinha sido recuperada, e a bisa Joaquina vivia numa vivenda grande e rodeada de árvores, flores e bicharada.

Passados os seus sessenta e sete anos, o Estado, após a nossa intervenção, lá lhe concedeu uma pensão de velhice, dinheiro esse que a bisa ia levantar sempre no mesmo dia, a não ser que calhasse num fim-de-semana. Passado algum tempo, passou a pedir à Ernestina, que trabalhava nos correios e vivia ali perto (e que era a neta mais nova do Sr. Julião, o faz-tudo que, de quando em vez, lá ia arranjar uma capoeira ou beber um licor de poejo e conversar sobre as novidades em Reguengos) que lhe levantasse o cheque e deixasse o dinheiro, fechado num envelope, na abertura da caixa de correio que tinha na porta da frente. Os cães conheciam a Ernestina e faziam-lhe uma grande festa sempre que ela aparecia, já que não era raro levar-lhes um pequeno petisco. Os últimos eram um par de rafeiros alentejanos, grandes, mas ternurentos.

O tempo passou. A bisa acumulava mais e mais anos. Tínhamos conseguido que ela aceitasse ter um telemóvel, para que lhe pudéssemos ligar e saber dela, mas a bisa nunca fazia uma chamada.

Nós gostávamos muito dela e sabíamos que a bisa gostava de nós, mas a maneira que arranjava de o dizer era através de uma cabidela de se lhe tirar o chapéu ou com aquele licor de poejo que a deixava levemente ébria. A mim, ninguém me convence que, depois da morte do bisavô Carlos, ela não namoriscava o Sr. Julião sempre que tinha oportunidade — e sempre com aquele licor.

Até que veio a pandemia. As estradas, as ruas e as deslocações tornaram-se difíceis. Com a pandemia, veio um tempo seco, durante quase todo o ano, juntando a seca ao cenário de reclusão que desertificou o mundo exterior durante a boa parte de um ano e meio. Durante muitos meses, não conseguimos ir ver a bisa, embora falássemos com ela ao telemóvel. Estava sempre bem-disposta, mas a voz tinha um tom estranho, algo arrastado. 

Os meses passaram, transformando-se num ano e meio, até que resolvemos ir ao Alentejo. Nas últimas semanas, a conversa ao telefone tornara-se excepcionalmente breve, e a voz dela estava mais estranha. Garantiu-nos que não estava nem nunca tinha estado doente, o que nos tranquilizou (já eu, tinha apanhado Covid por duas vezes, e a coisa não tinha sido simpática). Ainda assim, era tempo de a ir ver. 

Quando chegámos a casa da bisa, em Junho, o calor era imenso. O termómetro do carro acusava trinta e quatro graus, e o ar estava seco como uma amargura antiga. Os dois cães correram na nossa direcção, contentes e com aquela maravilhosa capacidade que os bichos têm de reconhecer os seus. Dados os carinhos, gritei para a casa, chamando pela bisa.

Nada.

Chamei novamente. Desta vez, a voz dela fez-se ouvir. Tinha aquele tom arrastado que já tínhamos notado ao telefone, mas que era bem mais notório ao vivo. 

Bati à porta. Nada. Nem sinal dos passos da bisa ou da sua voz. Apenas o som das cigarras, denunciando a canícula, o arfar dos dois cães e um ou dois cacarejos das galinhas que por ali andavam, parceiras incólumes dos dois canídeos. Tive um mau pressentimento, um arrepio na nuca, mas não fazia ideia da razão.

Meti a mão na maçaneta da porta e verifiquei que estava destrancada. Ao abrir a porta, reparei que havia envelopes no chão. Todos iguais. Peguei num deles e abri-o. Notas de vinte euros. Eram os envelopes da reforma que a Ernestina tinha colocado na ranhura, e que a bisa não apanhara. 

O meu irmão ficou na rua, a brincar com os cães. Entrou disparado quando eu gritei. Espavorido, chegou à cozinha e estacou, horrorizado. 

Sentado à mesa, estava o cadáver mumificado da bisa Joaquina. A face, mesmo massacrada pelos desrespeitos da morte, parecia sorrir. Numa das mãos, tinha um copo, já ressequido, que deveria conter o licor de que ela tanto gostava. Na outra, uma carta da Segurança Social, agradecendo o envio da prova de vida, comprovando a manutenção do pagamento da pensão de velhice. 

Atrás de nós, os dois rafeiros alentejanos estavam sentados, alegres, à espera da refeição que, aparentemente, nunca lhes faltara. 

Pareciam sorrir. Como ela. 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em Lisboa, no ano de 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance. É guionista de BD, publicou contos em várias antologias, dois romances e dois livros infantojuvenis. Destaca títulos como os romances As Três Mortes de Um Homem Banal e A Passagem, bem como o conto «Coelho Branco», publicado na antologia IN/SANIDADE, e com o qual ganhou Grande Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto – 2024.
Stephen King, Julian Barnes, Rosa Montero, Neil Gaiman e Alan Moore são algumas das suas referências.
Vive em Carnaxide com a sua companheira, os seus três gatos, e é um feroz defensor do maximalismo da liberdade de expressão, artística ou de qualquer outra tipologia.