Quando o Céu Chora
de Susana Laires
Aqui, quando chove, troveja. Desde que me lembro, é assim. Os deuses falam-nos através da natureza, mas, por vezes, distraem-se, em noites como a de hoje. E os demónios também arranjam forma de se comunicarem. Hoje, chora o céu, e poderá voltar a chorar ele.
Na noite em que o meu irmão foi concebido, também chovia. Trovões faziam tremer as vigas, raios chicoteavam montanhas, o vento parecia querer fugir-lhes pela aflição com que nos batia nas portadas. O restolhar das folhas, lá fora na floresta, competia com o tambor no meu peito. Tentava acalmar-me, lembrando-me de que sentia «pânico» porque era Pan quem conjurava os sons.
A minha mãe ainda espreitou duas vezes pela porta do quarto, arrastando o vestido negro pelo corredor. Em nenhuma admiti que a queria do meu lado.
Ela passava os serões a rezar por um marido. O meu pai tinha morrido e deixara-nos apenas a casa e o rebanho. No inverno, as estradas eram cortadas pelo mau tempo e passávamos meses isoladas. As tempestades eram assustadoras porque quebravam o silêncio que pesava nesta casa e nas nossas gargantas.
Da tormenta, brotou um choro, quase impercetível no meio da aflição dos animais, e o instinto maternal tomou posse dela. Atravessou o vento e a chuva e entrou no estábulo. Abriu caminho por entre as ovelhas e as cabras, que lhe suplicavam um colo de mãe, e seguiu os lamentos pelo escuro.
Os seus olhos esbarraram com os de um homem. O candeeiro iluminou-lhe os cabelos negros, que pendiam como cachos na fronte, e dois chifres de bode, além de uma barba rala que lhe escondia o queixo. O tronco nu era perfeito, mas terminava numas longas pernas cobertas por pelo. Os pés eram dois cascos. Reconheceu-o de imediato, não fosse o protagonista de tantas lendas que a deviam ter feito recuar. Em vez disso, sentiu-se tomada pelo desejo.
A divindade não regressou depois daquela noite, apesar de a minha mãe percorrer os caminhos solitários do bosque e chegar a deitar-se com as ovelhas, mesmo quando a barriga já lhe pesava nos joelhos. O deus da floresta e da fertilidade deixara mais do que saudade — plantara uma semente naquele terreno, cujas raízes me repeliam.
Até lhe rebentarem as águas, a minha mãe viveu meses de delírio, acreditando que carregava o salvador no ventre. Garantiu-me que teria um varão a quem chamaria Mahomet — digno de louvor.
Segurou-me a mão para suportar as dores do parto, ali mesmo, naquele estábulo. Ouvi-a gritar enquanto o meu irmão a estripava para abrir caminho. Fui eu quem o viu primeiro, a deslizar-lhe pelas pernas: pupilas alongadas lado a lado, pelo lambido pela placenta, focinho igual ao dos cabritos; o torso e os braços eram humanos, mas tinha patas como as do pai. E o som que acompanhou o nascimento não foi um choro, mas um audível «báááá». Como um animal selvagem, não tardou a apoiar-se nos cascos.
Ela não o olhou com asco ou terror, mas com a ternura de quem dá à luz. Acolheu-o nos braços e levou-o ao peito. A besta fincou-lhe os dentes na carne para sugar o leite. A minha mãe, ignorando o sangue que lhe corria pelo externo, deu-lhe um nome, inspirada pelo guincho da criatura.
Baphomet.
Depois, ficou imóvel. Os olhos vítreos permaneceram na mesma posição, como uma das minhas bonecas de porcelana. E o silêncio regressou. Mais audível do que antes.
Vi o meu irmão correr sobre as patas e pular a cerca que continha o rebanho.
Nunca mais o encontrei, desde esse dia, mas sei que ele, como tantos outros demónios, ainda habita na floresta. E, em noites como esta, ainda tremo. Porque, hoje, chora o céu. E rezo para que seja ele o único a chorar.
SOBRE A AUTORA
Susana Laires
A cabeça nasceu-lhe nas nuvens em 1993, e por lá tem ficado. Pouco há a fazer; é defeito de fabrico. A escrita foi dando voz às ideias que lhe surgiam e calando o silêncio da adolescência. Com o tempo, passou de hobby a profissão. Licenciou-se em Ciências da Comunicação, pós-graduou-se em Comunicação Estratégica e em Jornalismo. Foi jornalista, editora, gestora de redes sociais e é, atualmente, copywriter.
Apaixonada por História, Mitologia Grega, Literatura e Epidemiologia, mas incuravelmente atraída pelo bizarro e sombrio. Talvez por isso se vista quase sempre de negro, apesar de ver a vida com cores garridas.