Reserva N.º 639
de Dália Rodrigues
Pingue-pingue.
Quando abro os olhos, o sol pouco ilumina o quarto. A almofada está molhada, meio peganhenta. Credo, dormi assim tão profundamente? Nunca me tinha babado desta forma. Limpo os lábios à manga do pijama e levanto-me com um bocejo. De cara lavada, reparo na mancha vermelha que tinge os lençóis brancos do hotel. Merda, achei que tinha tirado o batom antes de me deitar. Tento limpar com papel higiénico para não sujar mais têxteis alheios. Imagino sempre o que devem dizer dos hóspedes que lhes dificultam o trabalho…
Pingue.
Uma gota vermelha sobre a minha mão. Hã? Por cima da cabeça, vejo um dos cantos da conduta de ar condicionado encardido, escarlate, a escorrer o batom da minha ingenuidade. Uma grande bolha disforme prepara-se para jorrar a substância.
Devagar, afasto-me, não vá a força motriz do meu movimento avançar o estado da catástrofe. Pego no telefone. Como é que era o número da receção?
A bolha desfaz-se em largas gotas que explodem em poças no chão e na cama, um vermelho aguado e desnutrido começa a inundar-me o quarto. Engulo a bílis que me vem ao de cima.
Ouço o silêncio da linha ao ouvido, não me lembro da porra do número.
Ah, o papel de boas-vindas tem o número, disse-me a rececionista quando cheguei! O coração tapa-me a faringe e custa a respirar. O papel. O papel? O papel! Sem tirar os olhos da conduta, procuro o papel. Não está na mesa de cabeceira, nem na secretária. Os bolsos do casaco! É isso: 10100. Corro para o telefone, esquecendo-me da crença na cadeia de energia no movimento. Tenho o auscultador na mão quando retomo o contacto visual com a conduta: algo mais se tenta esgueirar pelos buracos que trazem ar ao quarto. É branco e faz-me lembrar dobrada de vaca. Uma membrana esbranquiçada, fina, enrodilhada, um saco de plástico biológico amarrotado. É como se algo forçasse e empurrasse a trouxa pelas fendas.
Apresso-me a marcar os números.
10001.
Não, não era este.
Os dedos tremem, não tenho controlo sobre os meus movimentos e marco números aleatórios. 1208011.
Respiro até quatro. Cinco. Seis. Sete.
1000.
Merda, como é que era? Oito. Nove.
O som do contorcer gutural nas condutas entranha-se-me pelos ouvidos.
Um saco de pele plastificada é expelido, e com ele traz um olho. Um olho gelatinoso, com veias vermelhas sob tensão, que mergulha na poça de sangue e fluidos fisiológicos, colando-se à papa corporal.
O coração tapa-me os ouvidos, não só a garganta, e tenho a cabeça debaixo de água, afogada em sangue, oxigénio, pânico, numa bolha insonora.
Piii.
Um tinir desfocado atravessa-me os sentidos. Acho que vou desmaiar quando o mundo para por dois segundos que me parecem cinco minutos.
Num momento de lucidez, marco 10100, e dois corpos meio desfeitos rebentam a conduta e caem em câmara lenta, a desmontarem-se, peça por peça, durante a queda. Carne podre e esponjosa desprende-se dos ossos, esses agora expostos, gordura liquefaz-se cobrindo o que sobra da pele transparente. Um dos corpos parece penetrar-me a alma com o olho que lhe resta, muito aberto.
— Rece– Hotel Conc–ção, –la — Teresa. — que posso s– útil?
Piiii.
Silêncio.
— Estou? Posso ajudar?
Respiração entrecortada. Limpo a garganta.
— Teresa, acho que vou precisar de outro quarto.
SOBRE A AUTORA
Dália Rodrigues
Escritora, tradutora, revisora, editora, designer editorial. Desde sempre apaixonada por histórias fortes, finais abertos e histórias e personagens que nos deixam desconfortáveis. Inspirada por tudo e por nada, por sonhos e pesadelos, pelo reflexo da água e pela sombra da floresta.