Resignações

de Pedro Lucas Martins

 

A mancha não desaparecia. Lúcia esfregou-a várias e insistentes vezes com palha-de-aço e lixívia, até a parede branca do quarto voltar a ficar imaculada, em harmonia com as restantes. Alguns dias depois, no entanto, a malograr o esforço e a esperança, a mancha regressava. Feia, intrusiva, persistente.

Após várias tentativas sem sucesso, decidiu que o melhor seria cobri-la. Não seria tão mau se não a visse. Para o efeito, usou o calendário do jubileu que o padre Amílcar lhe dera na catequese — onde Jesus, numa túnica clara, abria os braços benevolentes, para amparar os que mais precisavam.

Não demorou, porém, até que a mancha se entranhasse no papel, deformando o rosto do redentor. Os olhos caridosos passaram a ameaçadores; o sorriso, ainda que se mantivesse, era agora de malícia, dando uma nova e aversiva interpretação ao seu gesto convidativo de acolhimento. Era uma figura a quem obedeceríamos não por amor, mas por medo.

Lúcia não tirou o calendário. Resignou-se a ver mancha; aprendeu a viver com ela. E quando o pai a visitava no quarto à noite, devagar, para não fazer barulho; quando Lúcia pensava que o que faziam era estranho e confuso e errado; quando pensava que talvez devesse dizer qualquer coisa a alguém e libertar-se daquele segredo, olhava para a mancha e para o rosto corrompido de Jesus, que lhe dizia:

Honrarás o teu pai.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Pedro Lucas Martins

Pedro Lucas Martins nasceu em 1983, em Lisboa. Desde aí, não se lembra de uma altura em que não gostasse de terror.

Com estes gostos, preocupou toda a gente à sua volta. Naturalmente, insistiu e venceu-os pelo cansaço.

Agora, entre outras coisas, escreve e edita ficção de terror, tendo sido esta reconhecida com o Prémio António de Macedo (2018) e com o Grande Prémio Adamastor da Literatura Fantástica Portuguesa (2020). Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editor literário.