Ritos de Passagem
de Maria Duran
Algodão bordado: flores e rouxinóis debruando pulsos e pescoço. Todos concordaram que era um belo fato de primeira comunhão.
Já estava na família há mais de uma geração; e, sim, era de algodão áspero, um pouco grande demais para uns, um pouco curto para outros.
Mas pronto: flores e rouxinóis, e meia dúzia de fotografias de rapazes com narizes parecidos no mesmo fato, tornavam claro que era um uniforme de família nestas ocasiões especiais.
Claro que o rapaz devia ter estado presente no ensaio do grupo de catequese, mas coitado… estava de cama com uma gripe.
Notou-se na festa. Olhares das outras famílias, alguns comentários condescendentes; o rapaz, meio aparvalhado, ignorado pelos colegas. Descolado pelo seu erro, que naturalmente não era o primeiro, nem seria o último.
Ainda agora, quem visita a casa da avó e perscruta as fileiras de idosos dos muitos netos repara nele. O rapaz na fotografia lá atrás, a própria moldura inclinada como que embaraçada com o sorriso sonso do menino, a bela camisa branca manchada com o sangue da primeira eucaristia. Notam-se os olhos de carneiro mal morto. A cara manchada, também, mal limpa, como quando comia um prato de bolonhesa no almoço de domingo, não notando o molho a secar na boca nem os olhares trocistas dos primos.
Coitado, ainda estava doente, pouco preparado. A avó insiste, ruborizada, até os visitantes pousarem a moldura de novo no seu lugar de desonra e concordarem.
Sim, pobre miúdo, os pais eram muito mundanos. Não fosse a perna má, a própria avó o teria levado mais vezes à missa e à catequese. O pároco também lhe podia ter dado uns palpites antes de a longa lista dos pequenos fiéis chegar ao seu nome, antes mesmo de a primeira menina vestida de branco se aproximar, com passos determinados, do carneiro. Podia ter-lhe explicado como dobrar o queixo, evitar salpicos, inclinar os joelhos em genuflexão antes de morder o animal — mas pronto, já está.
O fato de algodão lá voltou a ser branco, quase branco, pronto a ser vestido por um próximo primo. Ficaram apenas umas pontinhas brancas na gola e nos pulsos, demasiado entranhadas para a lixívia fazer milagres onde o parvo do rapaz se sujara com o sangue do sacrifício.
Coitadinho, devia ser da febre. Estava meio atarantado.
SOBRE A AUTORA
Maria Duran
Maria Duran é investigadora e escritora. Nascida em 1997, pesquisa artistas pouco conhecidos do século XIX de dia, e à noite escreve sobre outro tipo de fantasmas. Foi finalista do Festival de Poesia de Lisboa de 2024 e tem apresentado poesia, colagem, fotografia e prosa um pouco por todo o mundo. O seu primeiro livro será publicado pela Editora Urutau.