Salpicão

de Patrícia Lameida

 

Mena cabeceava entre uma plateia de gente que conhecera toda a vida. Depois de trinta anos na produção de enchidos, era fácil reconhecer pela voz todos os colegas daquela zona. Seria a sua última competição, pelo que lhe era importante estar na abertura.

Sabia as regras — em vinte anos, não tinham mudado além da quantificação de sal. Conhecia os júris, escolhidos pela comunidade que avaliariam — gente séria porque, naquela arte, não se trabalhava de outra maneira. E tinha a certeza de que este era o seu melhor produto.

Quando soube que o primeiro prémio era seu, Mena não ficou surpresa. Passara o festival a ouvir os elogios sentidos de clientes e concorrência e, a cada palavra, sossegava a frustração. Aquele, que era o seu melhor salpicão, não poderia ser reproduzido. Nem ela aguentaria muito mais no labor.

Nos poucos momentos de calmaria, Mena dormitava e sorria com a tranquilidade de um trabalho bem feito: a carne tenra que cortou com parcimónia em pequenos pedaços; o sangue escorrido pela gravidade, que coletou na bacia nova cheia de alho e de whisky; a gordura fina que raspou à mão do animal, marinado em fumeiro de carvalho por uma semana. Uma obra de arte.

Ninguém o vira de outra forma. Na semana que durou a festa de enchidos local, Mena foi procurada até por gente de Lisboa. As encomendas do salpicão ultrapassaram o produto que tinha, e Mena viu-se obrigada a recusar vendas. Achou graça que a rejeição de encomendas aumentasse o interesse, e que a fama do seu salpicão lhe aumentasse o negócio, mesmo quando ela já não o tinha para vender. O povo era tão facilmente levado…

De qualquer forma, reservara o suficiente para servir em dose de degustação durante todo o evento e, no último dia, deixara pratinhos para os convidados da cerimónia de entrega de prémios. Comensais e jornalistas petiscavam na expectativa do que Mena poderia contar sobre o enchido. 

Perguntaram-lhe «como foi o processo de criação?» e Mena recordou o punho de António contra si ao longo dos anos, sentiu o cheiro daquela mesma pele, morta e fumada a carvalho velho, e respondeu «tranquilo», com toda a sinceridade. «Que ingrediente faz a diferença neste salpicão?» era fácil de responder. Fora um corte limpo, de corpo amarrado à cama onde António caíra, depois de mais whisky do que ar. Tivera o cuidado de lhe prender uma trouxa de gelo à virilha enquanto o transportara até ao fumeiro. E depois, foi cortando. «Carne de capado, fresca. Mas já não tenho mais.»

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.