Santo Amaro
de M.L. Vieira
Alto-mar, 1897.
Estamos perdidos. Nenhum sinal das baleias ou do óleo que ilumina o nosso mundo. As pranchas de madeira rangem com o balançar do mar. O sal, as algas, a brisa marítima, fazem parte do ar que respiro há dias, meses. Anos? Parece que passaram anos desde que te deixei. Não me lembro do teu perfume. Não me lembro da tua voz. Só sinto e ouço a quietude que existe aqui.
O vapor dos mecanismos da nau mistura-se com a névoa perpétua. Não consigo ver nada para lá das velas que esvoaçam sobre a borda do navio. O Santo Amaro existe agora num estado intermitente de existência, num limbo. Estaremos no Tártaro? Voltarei a ver-te alguma vez mais? Envolvidos nesta bruma, certamente nenhum dirigível nos verá do céu.
Tento lembrar-me das tuas feições. Tento sentir a tua pele com os meus dedos gretados e engelhados pela água salgada. A sós no convés, à noite, estico os braços ao nevoeiro e procuro os contornos do teu corpo. Delineio o teu perfil com o dançar das mãos, dos braços, finos e ressequidos. Esculpo a tua forma com argila feita de neblina.
Fome. Os barulhos do meu estômago juntam-se à sinfonia marítima. Já não como há três dias. As nossas reservas acabaram e não resta nada a bordo. Os peixes desapareceram. O que resta no oceano são olhos amarelos, caudas ossudas, cabelos longos, sorrisos perversos que murmuram pela bruma eterna. Que nos chamam. A maior parte da tripulação cedeu às sirenes, atirou-se ao mar. Mas eu continuo aqui. A tua forma enevoada prende-me ao bamboleio da nau.
Agarro-te com força e não resisto mais. Lambo os teus braços, os ombros, as clavículas. Rasgo a tua carne com os meus dentes negros. Dou dentadas esfomeadas e devoro-te por inteiro. Sinto o teu sangue quente e espesso. Sinto o pulsar do teu coração na palma das mãos. Unhas lascadas rompem a superfície da tua pele. Bebo e como o que tu és na minha memória. Nada resta de ti.
Nem de mim.
SOBRE A AUTORA
M.L. Vieira
Escritora e ilustradora. Ganhou o primeiro prémio na Mostra Nacional de Jovens Criadores na categoria de literatura em 2023. Frequenta o mestrado de Escrita Criativa na FLUC. É cocriadora, editora e designer da revista de ficção especulativa PACTO.