Save All Your Kisses for Me
de Ricardo Figueira
Só ao terceiro pingo acordei. Ao início, pensei que fosse água, que estivesse a chover dentro do quarto. Instintivamente, deito a mão à cara. Abro a luz e vejo que é um líquido vermelho. Parece sangue, cheira a sangue. É sangue! Como é que me começou a cair sangue na cara a meio da noite? Olho para cima e vejo uma poça no tecto, a pingar. Plim, plim…
O pânico seria a reacção mais normal, mas, não sei porquê — talvez porque nestas coisas costumo reagir ao contrário dos outros —, levanto-me muito calmamente e fico uns segundos a observar aquela poça no tecto do quarto, enquanto as gotas caem na almofada a um ritmo certo, como os ponteiros de um relógio. Plim, plim…
Tinha de haver uma explicação lógica para aquilo, e a explicação só podia estar no apartamento por cima do meu.
Visto umas calças, agarro na chave, saio do apartamento e, sem pressas, subo a escada até ao andar de cima.
Abeiro-me da porta do apartamento. De dentro, vem um ruído como o de uma fornalha a trabalhar. Bato à porta e ela abre-se.
À minha frente, vejo o que só podem ser as chamas do Inferno. Ao longe, ouço gritos e o som de chicotes a estalar. À porta, está um monte disforme feito de carne, com um olho no meio da testa e uma boca enorme, com afiados dentes de aço. Os urros que solta fazem-me lembrar o som de metal a ser serrado.
— Foge!
Desço as escadas a voar, quase tropeço e caio. Tenho de alcançar a minha porta o mais depressa possível.
Estou a dois passos, quase lá. Mas a fechadura desapareceu. Vejo-me com a chave na mão, feito patarata, a tentar fazer sentido do que estará a acontecer.
Do interior do apartamento, soa uma música.
Kisses for me, save all your kisses for me…
Como é que aquela música pode estar a tocar se não deixei nada ligado em casa? Encosto o ouvido à porta.
Bye-bye, baby, bye-bye…
Algo, vindo de dentro, embate violentamente na porta e causa um estrondo. Recuo com medo. Tremo como uma vara verde. Um segundo estrondo quase deita a porta abaixo.
Ao terceiro estrondo, acordo. Sinto-me inicialmente confuso, depois aliviado por tudo não ter passado de um pesadelo. Certamente, um resquício dos tempos em que via filmes de terror. Dos tempos em que havia cinema, electricidade e tudo isso.
É mais um dia como os outros, com a rotina de sempre para cumprir: sair do buraco e percorrer o bosque à procura de comida, a cantarolar a mesma canção.
Kisses for me, save all your kisses for me…
Bye-bye, baby, bye-bye…
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Ricardo Figueira
Ricardo Figueira nasceu e vive em Lisboa, tendo passado a maior parte da vida adulta na cidade francesa de Lyon. Retomou recentemente o gosto pela escrita e tem contos publicados em várias coletâneas, incluindo no primeiro volume da antologia dos melhores contos da Fábrica do Terror. Tem dois romances escritos e, por enquanto, nenhum publicado — mas ainda não perdeu a esperança. É igualmente fotógrafo e corealizou, com Isabel Pina, a curta-metragem Motorphobia. Profissionalmente, trabalha como jornalista para a cadeia Euronews.