Sede
De Nuno Amaral Jorge
No início da madrugada de 19 de Maio de 2024, o céu do mundo foi rasgado por uma luz intensa, que deixava um rasto luminoso à sua passagem. Foi como se alguém tivesse momentaneamente acedido uma lâmpada celeste. Todos os olhos, pelo menos os que permaneciam acordados àquela hora, fixaram o céu, em maravilhamento face a um fenómeno quase único, cuja beleza natural era tão inegável como impressionante.
O que ninguém esperava era que o meteorito caísse no Alentejo, perto do Alqueva, e que trouxesse ao mundo algo mais do que um breve, ainda que belo, espectáculo de luz. Apesar de ainda não se conseguir determinar onde o meteorito caiu, há uma ideia bastante concreta acerca do que saiu lá de dentro — e o que quer que seja deve ter feito uma viagem comprida, porque parece ter vindo com fome.
As figuras são grotescas, de anatomia trocada, mas são inequivocamente mortíferas, além de terem uma especial e terrível forma de se alimentarem. Mas já lá vamos.
Estou no meio de algumas oliveiras. São três da tarde e o calor parece fazer estalar a pele. Tenho a garganta seca, o que se vai tornar grave em pouco tempo. Até a transpiração diminuiu. Cheira-me que não deve demorar muito até receber a visita da menina desidratação. Tinha a sua piada morrer desidratado, ao contrário de tanta gente.
Ali à frente, está um cadáver. Um par de corvos já o foi espreitar e tirar um ou outro pedacito. Está muito maltratado. Vi-o a tentar chegar aqui, às árvores, mas foi apanhado por duas daquelas coisas. Têm as bocas, crivadas de dentes, nas terminações do que parecem ser os braços, e aparentemente comem retalhando a vítima, pedaço a pedaço, dentada a dentada. Tive de fechar os olhos e tapar os ouvidos, mas ainda assim ouvi os gritos. E duraram demasiado tempo.
Estou mesmo com muita sede. E tenho de sair daqui e tentar chegar àquela casa. Abrir a torneira, beber água, e voltar aqui. Não sei porquê, mas não se aproximam das árvores, ou já estaria morto. Se não beber água em breve, no entanto, estarei morto de qualquer forma.
As cigarras cantam especialmente alto. Estou exausto, sujo e embebido no pouco suor que me resta. Ainda assim, não me consigo esquecer desta espécie de tremura e dor no estômago. Nunca pensei que existisse medo a este ponto — um medo capaz de lutar ferozmente com a sobrevivência. Se a sede ganhar, provavelmente perco eu.
Já não vejo um há algum tempo. Também não há aqui ninguém.
Tenho de ir. Junto à casa, há um par de sobreiros. Pode ser que consiga. Tenho de conseguir. Não sei como vou correr com esta sede, mas vai ter de ser.
Passada larga, apressada. A casa está a cerca de duzentos metros. O ar entra-me ardente nos pulmões. A sede está insuportável.
Não vejo nada. Nem ninguém. Nenhum deles. Já sinto o sabor da água, e a antecipação é quase ingerível. E se caio? Tenho as pernas bambas. Todo eu pareço estar fora do meu corpo, mas as dores são reais, assim como a lixa em que se transformou a minha garganta. Só vejo a porta da casa.
Um som. Rápido, ritmado.
Não vou ter tempo. Tenho de chegar aos sobreiros.
O rugido duplo das duas bocas. Ou mãos. Ou o Diabo…
Os sobreiros. Trinta metros. Tontura. As pernas parecem esparguete cozinhado, mas tenho de lá chegar. A adrenalina que me resta é convocada pelo terror, e as pernas resolvem obedecer.
Sobreiros, finalmente. Sinto-o atrás de mim. Os rugidos são agora altos. Porra, são rápidos. E cá está ele, o cheiro… Meu deus, o cheiro.
Olho-o de frente. Está a menos de dez metros de mim e não se aproxima das árvores. Vejo as duas bocas, nas extremidades dos membros, a abrir e a fechar. Os dentes estão cheios de sangue e pedaços de alguma coisa que me recuso a identificar, sob pena de vomitar líquido que não posso dispensar.
A coisa rodeia-me, insistente, apesar de não poder alcançar-me. Ao que parece, uma árvore é mesmo uma amiga, mas nada disto vai valer a pena se não beber algo rapidamente. Vou apodrecer à sombra, rico consolo.
Nem urina tenho para beber. Não sai nada. Aquela coisa não se vai embora, e eu tenho mesmo de beber alguma coisa. Então é isto o desespero.
Mas espera… Será?
Não sou capaz.
É melhor que sejas, porque daqui a pouco não vais ser capaz de nada para sempre.
Mais tonturas. Vou apagar em breve. Vai ter de ser. No braço?
Tem de ser.
Porra, isto dói!
Cala-te e morde!
Os dentes entram-me no braço. A dor é nauseante. Porém, de súbito, algo líquido, pastoso e quente, de sabor ferroso, invade-me a boca. A sensação é indescritível. Olho para o animal — ou coisa, ou lá o que é aquilo —, que executa um movimento como uma dança grotesca. Está excitado com o cheiro.
Sorvo o meu sangue. E ganho algum tempo. Ele vai acabar por se ir embora. A torneira virá. É só esperar.
Entretanto, acho que vou beber mais um pouco.
O outro braço. Dor. Mais sangue.
A sede segura-se. Mas durante quanto tempo?
Só mais um pouco. Mais umas gotas.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Nuno Amaral Jorge
Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infantojuvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal, pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.