Segredistas
de Liliana Duarte Pereira
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
A elevação acentua-lhes a altivez.
Entre os gravetos secos e engenhosamente colados com saliva, são invisíveis.
Intrusos que, vistos, se desfazem em pó.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Têm asas cor de ouro, ornamentadas como filigrana.
Fogem da luz. Fogem da chuva. Não se queimam. Não se molham.
Voam coordenados, furando a noite e desafiando as brechas mais estreitas.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Majestosos na arte camuflada de chegar.
Pousam na cartilagem das orelhas, sem interromperem os sonos.
Segredam atrocidades.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Conhecem o cheiro avinagrado dos capazes.
Daqueles seres pacatos que nunca fariam mal a ninguém.
Não é de repente, eles têm tudo o que é preciso e sabem-no.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Feitos de frio e apatia.
Não esperam por nada. Aguardam por tudo.
Anseiam pelo romper do frágil fio que liga a vida.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Carne que se arrasta em gritos pelo chão.
Pele desfeita, violentada, enferma.
Ossos prensados de aperto.
Eles vivem nos ninhos abandonados das cegonhas.
Transcendem no leito improvisado.
Deixam no seu lugar a nova leva.
Até depois do fim dos tempos.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Liliana Duarte Pereira
Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.
Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).
Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.