Sentimental
de Afonso Lucas
Lavar a louça sempre me tranquilizou. É uma tarefa muito simples, onde me posso deixar levar. As mãos submersas em água quente trazem ao de cima um prato ou um talher, a brilharem como novos. Como se nada tivesse acontecido.
Foi por essa razão que nunca arranjei uma máquina de lavar. Também é por essa razão que sempre que mudo de casa faço questão de desinstalar a máquina que possa já lá estar. Rituais para mim são importantes. Necessários. Semelhantes àquilo que alguns esotéricos chamariam de meditação transcendental.
No entanto, existem momentos, felizmente raros, em que o meu ritual não é de maneira nenhuma tranquilizante. Onde a tarefa se revela como trabalho. Um tipo de distúrbio que começa subtilmente, como uma voz a chamar num sono profundo. Quando dou por mim, estou a tentar lavar o mesmo utensílio há quinze minutos. As manchas de sangue persistem. A voz que chamava não era de todo uma voz, mas uma mosca que sobrevoava enquanto dormia.
Suspiro. É uma faca velha, e devia ter-me livrado dela há muito tempo, mas não consigo evitar ser um nadinha sentimental, visto que o sou com tão poucas coisas. Foi a faca que utilizei no meu primeiro projeto.
Lembro-me de ter sete anos. Consegui, na minha ingenuidade, encurralar um rato. O animal era-me interessante vivo, mas, por algum motivo, quis ver além disso. Depois de o cortar e abrir, de lhe puxar os músculos e ligamentos, fiquei ainda mais fascinado pela criatura.
A sensação que o ato me deu talvez fosse semelhante àquela que os rapazes descobrem no início da puberdade. Não sei, é só uma suposição da minha parte.
Procuro na minha cozinha por bicarbonato de sódio. Sei que o deixei ao pé da farinha. Retiro uma colherada do bicarbonato e coloco num copo. Espremo um limão lá para dentro e misturo até formar uma pasta. Aplico na faca. Dali a quinze minutos, devo esfregá-la levemente com uma escova de dentes.
Digo a mim mesmo que esta é a última vez que utilizo a faca. Digo a mim mesmo que, assim que ela estiver limpa, a irei colocar dentro da gaveta, juntamente com os outros talheres, onde permanecerá uma lembrança. Mais tarde ou mais cedo, porém, sei que vou querer a ajuda da minha amiga mais antiga.
Saio da cozinha e passo pelo espelho no corredor. Nos últimos meses, tenho-me dedicado a correr com um grupo de desportistas da minha área. Começamos às seis da manhã todos os dias. Nota-se na minha cara. Estou mais magro e jovial. O meu aspeto transmite confiança. Pratico um sorriso e parece-me genuíno.
Desço até à cave onde tenho o meu projeto mais recente. Normalmente, não trago projetos para casa. Faço questão de arranjar sítios desertos, baratos e discretos. Preferivelmente, perto de um corpo de água ou florestação densa. Mas não pude, de maneira nenhuma, evitar fazer algo com ela aqui.
O nome dela é Viviana. E ela ama-me. Bem, suponho que já não me ame desde que lhe cortei os membros e a preguei à parede. Continua viva, embora já preferisse o contrário. Existem coisas piores do que a morte. Ela é que fez absoluta questão de vir comigo para casa à noite, ainda que eu protestasse levemente. Ela queria ver onde eu vivia.
«Por favor, mata-me», murmura ela. Tem a cabeça baixa e o cabelo tapa-lhe a expressão. Pego numa esponja e limpo-lhe o que lhe resta do corpo. Tento ser gentil. O processo não tem de ser desagradável. Pelo menos, gostava que este não fosse. Gosto de variar um pouco entre projetos.
«Porque é que estás a fazer isto? Porquê eu?», continua ela.
«Porque não tu?», digo suavemente. «És tão merecedora ou interessante como qualquer outro homem ou mulher.»
Ela começa a chorar. O corpo convulsiona contra a parede de betão.
«Sabes, para mim, rituais são muito importantes. Posso desligar a mente. Deixar de pensar, pensar, pensar. Posso apenas ser. É como meditação. Tu costumavas fazer yoga não era?», sorrio ao perguntar. «Bem, agora não consegues.»
Ela não diz nada, continua a chorar.
«Ter um sentido de humor ajuda nestas ocasiões», aconselho.
Lembro-me de que os quinze minutos já passaram. Acaricio a cara dela e digo-lhe que voltarei dentro de momentos. Esfrego a minha faca com a escova de dentes. A pasta de bicarbonato e sumo de limão funcionou. Limpa como o dia em que esquartejou aquele rato.
Seguro a faca na mão e considero enfiá-la na gaveta. Sinto um sorriso a desabrochar.
«Oh, anda lá daí então.»
Desço os degraus, já considerando como vou acabar o projeto. Por vezes, é planeado ao detalhe. Outras vezes, deixo que a inspiração me surja. Penso num livro de crime que li no clube de leitura com as meninas (que são ainda mais macabras do que eu). A personagem principal, num ato de vingança, retira a face de uma das amantes. Isso soa-me muito bem.
Aproximo-me da Viviana com a faca e explico-lhe o que está prestes a acontecer. Tento ser gentil. Para minha surpresa, ela não tem reação. Nem um micromúsculo do seu rosto se dignifica a contorcer. Fico feliz por estarmos a lidar com a situação como adultos e aproximo a minha amiga da cara dela.
É nesse instante que, num movimento repentino, ela dá uma cabeçada para a frente, e a faca entra-lhe no crânio. Eu continuo a segurar nela, contorcendo-a, e ela parte-se acidentalmente. Não esperava isto.
Lágrimas genuínas escorrem-me pelas bochechas. A Viviana está morta. O meu ritual foi arruinado. Agora, só me resta limpar tudo e esquecer que a minha amiga foi despedaçada sem propósito nenhum.
É isto que ganho por ser sentimental.
SOBRE O AUTOR
Afonso Lucas
Afonso Lucas é um jovem cineasta formado na Universidade Lusófona. É também um artista autodidata em ilustração, pintura e escultura. Tem uma paixão por literatura de vários géneros e de os explorar na própria escrita.