Ser um Gato

de Susana Silva

 

O cheiro a maçã e canela inunda-me.
Está quente aqui.
Olho o relógio e conto cada minuto.
A ansiedade cresce,
De ver os vossos rostos,
A vossa surpresa,
A minha,
Ao mergulhar naquele mar de confettis.
Doze badaladas e a dança começa,
Papéis coloridos são trocados por sorrisos,
Abraços, gargalhadas,
Por tantas cores.
Deito-me sob a árvore que parece engolir tudo.
As luzes espelham o seu reflexo nos meus olhos.
Não é verdadeira,
Mas imagino que o é.
Fixo o alto por entre os ramos.
O vosso riso embala-me e deixo-me levar.

A ausência de ar traz-me de volta.
Inspiro o quente abrasador,
O negro nauseabundo.
Corpos metálicos acumulam-se,
Pedaços, inteiros, quebrados.
Lixo de outros,
Nosso,
De alguém.
Levanto-me e caminho.
Estendo a minha mão e
Pego em algo que venderei mais tarde.
Ponho no saco.
Escavo entre as peças frias,
Guardo outra,
E mais outra.
Algumas moedas em troca,
Um pão.
A escuridão funde-se com o negro.
Tento ser um gato.
Não o sou.
Vejo luz ao longe,
Um pouco em cada canto.
Não cintila, mas queima.
Piso o mesmo caminho,
Arrastando o pequeno saco.
A respiração curta.
O lixo no bidão alimenta o último fogo.
A silhueta do que outrora fora vivo
Surge no horizonte,
Ramos nus.
A luz alcança o seu clímax e morre.
Olho o negro e tento ser um gato.
Procuro mais calor.
Deito-me junto a ti e aperto-te a mão.

Mãe?

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Susana Silva

Susana Silva, também conhecida como Susie Saint-Claire, nasceu em Lisboa, mas foi Évora a cidade que a viu crescer. É oceanógrafa física, mas desde cedo que a escrita mora na sua gaveta. Em 2021, o seu conto de estreia, «O Palco Vazio», integrou a antologia de contos de terror Sangue Novo. Para Susie, a escrita é uma forma de expressão sensorial, que usa para pintar imagens aprisionadas na sua mente. Mergulhar na sua prosa poética é descer a um mundo de escuridão, melancolia e tempo…