Tinnitus
De Carlos Filipe Matos
A primeira instrução dizia «de noite», mas não mencionava horas. E eu não estava sozinho, como devia. Na fila da frente, estavam duas senhoras ajoelhadas em oração. Voltaria noutro dia, se nada acontecesse.
O normal seria ajoelhar-me no corredor, benzer-me e escolher um dos bancos à direita ou à esquerda. No entanto, sou ateu e estava com medo do que viesse a seguir.
Escolhi a última fila à esquerda e continuei até à ponta do banco, afastando-me da entrada. A madeira estalou quando me sentei. Limpei as lágrimas sem tirar os óculos e respirei fundo, tentando acalmar-me. Concentrei-me na enorme estátua do Judeu crucificado na parede do altar. Algures naquela reprodução visceral, estaria retratado o símbolo da paz, do amor e da entrega.
O desespero arrastou-me até ali, após dezenas de terapias inovadoras, ancestrais e duvidosas. Tomei medicamentos científicos, homeopáticos e esotéricos. Recebi palavras encorajadoras de quem desconhece o som do Inferno, um zumbido ininterrupto nos ouvidos que rapidamente me levou à loucura. O barulho à minha volta abafava-o, mas o silêncio tornava-o ensurdecedor. Só conseguia dormir quando o meu corpo se desligava por exaustão, para depois acordar novamente com aquele som a perfurar-me os tímpanos. À minha volta, temiam por mim, e eu temia por não saber quanto mais tempo aguentaria.
Então, tirei o papiro do bolso.
Não conseguia perceber se era real; podia ser apenas papel caro comprado numa papelaria. Talvez fosse uma burla — mas essas, por norma, envolvem dinheiro.
De repente, apercebi-me do completo silêncio. Deixara de ouvir a noite citadina que invadia a santidade da igreja: sirenes, apitos, drogados que se insultavam, pneus a escorregar na estrada molhada. Apesar das distrações, o zumbido ali estava, e parecia querer vingar-se na ausência de som. Ou, talvez, por saber o que ia acontecer.
Thuc. Thuc. Toc.
Thuc. Toc. Thuc.
O som vinha lá de fora.
Toc. Thuc. Thuc.
Virei a cabeça para a entrada. Os passos ecoavam pela igreja como se esta tivesse apenas paredes e tecto.
Toc. Thuc. Toc.
Uma sombra surgiu, estendendo-se pelo corredor.
Os bancos rangeram; as velhotas levantavam-se. Uma delas olhou para trás, ambas afastando-se tão rapidamente quanto a idade lhes permitia. Os meus olhos seguiram-nas enquanto iam murmurando pelo outro corredor, desaparecendo pela entrada secundária.
Nesse momento, um cheiro a podre fez-me arder as narinas. Olhei para a entrada principal.
As moscas entraram primeiro. A segui-las, vestida de negro e descalça, de costas arqueadas e apoiada numa bengala, vinha uma beata. O véu deixava apenas a boca e os dentes a descoberto.
A velha só avançou quando lhe devolvi o sorriso nervosamente. Voltei-me para a frente, desconcertado, e senti as lentes dos óculos a serem atingidas por algo. Depois, os olhos. As moscas estavam em cima de mim. Dançando, ou lutando entre si, as suas minúsculas asas arranhavam-me as pálpebras. Tirei os óculos e consegui afastá-las. Esfreguei os olhos enquanto a visão turva identificava uma mudança no altar. Voltei a colocar os óculos e imediatamente recuei contra o encosto, empurrando o banco para trás.
A vela alta caíra contra a mesa central, e o pano começara a arder. A cabeça do Nazareno crucificado mexia freneticamente, de boca aberta, numa súplica agonizante. A coroa de espinhos fazia-lhe o escalpe sangrar pela cara abaixo. Dos pregos nas mãos da estátua, escorriam fios vermelhos que pingavam e desciam pelos braços magros.
Tentei levantar-me, mas o peso de uma mão no ombro direito tirou-me as forças. Virei-me e vi a beata sentada na outra ponta do banco, pelo menos a oito metros, de cabeça virada na minha direcção e lábios esticados num sorriso profano. Vi-lhe a mão regressar à bengala.
Olhei para trás. Teria sido a velha? Teria realmente sentido o toque no ombro…? A velha levantou-se e caminhou lentamente para a entrada. As moscas saíram depois.
Corri para casa com o telemóvel na mão; os bombeiros não demoraram. O papiro, que chegou sem remetente há uma semana, num envelope selado a lacre, estava escrito à mão com três instruções, sendo que a primeira me dizia para entrar na igreja local à noite. Quando voltei a lê-lo, no entanto, essa instrução desaparecera.
*
No dia seguinte, soube que os bombeiros não tinham feito nada. Não houvera nenhum incêndio.
Em casa, à noite, eram três da manhã quando me bateram à porta. Para evitar a luz da sala, usei a lanterna do relógio. Não vi ninguém pelo visor. Moro num prédio seguro, onde só se abrem portas a encomendas de comida ou ao correio. Estava a tremer. Talvez houvesse outra carta no tapete da entrada.
Agarrei as chaves em cima da cómoda e, ao inseri-la na fechadura, ouvi uma porta a destrancar-se atrás de mim. Virei-me, mas parei a tempo, lembrando-me da segunda instrução:
«Quando a porta se abrir, não te podes virar. Em nenhuma circunstância, poderás voltar a olhar por cima do ombro, depois o sentires.»
Houve um som vagaroso, metálico e estridente, de uma porta enferrujada a raspar no chão. O meu coração pulsava-me nos ouvidos e na garganta, enquanto o suor, mesmo no frio do Inverno, me escorria pelas costas. Pensei que morreria ali mesmo, sem conseguir largar a maçaneta.
Não sei quanto tempo passou, mas perdi as forças quando ouvi os passos.
O medo impediu-me de virar. De respirar.
Alguém se arrastava devagar pela sala.
Tinham passado dez segundos? Sessenta?
O som parou atrás de mim.
E, então, senti alguém a respirar.
*
Passo os dias a mexer e a remexer o papiro com os dedos, dentro dos bolsos do casaco, lembrando-me da única instrução que resta:
«Para desistires do contrato, sangra para a capa de uma Bíblia, frente e verso. Deita-lhe fogo, mas não deixes arder tudo. Entra na mesma igreja à noite. Deixa a Bíblia no altar.»
Agora, onde quer que esteja, a respiração está comigo. Para onde quer que vá, os passos rastejam, constantemente atrás de mim. Mas o zumbido desapareceu.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Carlos Filipe Matos
Carlos Filipe Rilhó de Sousa Matos nasceu em Faro a 21 de julho de 1981. Depois de Ficheiros Secretos, Twin Peaks, Twilight Zone, Riget e outros, veio o interesse por literatura de terror, com um interesse pouco saudável nos cenários macabros de Clive Barker, Lovecraft, H.R. Giger, Junji Ito e amigos. A forte ligação ao terror literário e cinematográfico do rock e metal juntam os hobbies de escrita, bateria e jogos de computador, claro.