Uia

de Paula Estêvão

 

Quando a polícia a encontrou, não falou. Tinha recebido ordens precisas. Tinha sido ameaçada. Não falar. Nunca.

A casa era enorme. O piso da piscina. O piso dos serviços. O piso dos jogos. O piso dos quartos. O piso dos arrumos. O piso dos criados.

Encontraram-na, por fim.

O espaço era pequeno, fechado, sem luz. Mesmo que lhe tivesse sido permitido, no entanto, não seria capaz de percorrer a totalidade da casa de luxo. Há algum tempo que não conseguia andar.

Não se queixou. Não sorriu. A expressão não se alterou quando a libertaram. Não respondeu quando lhe perguntaram o nome. As fracturas, antigas e recentes, evidenciavam uma dor impossível. Levaram-na ao colo. Silenciosa. De olhar vazio, atordoado, focado nos agentes após o primeiro impacto de luz. Por fim, em tom esgotado, desafiando as ordens, proferiu:

― Uia…

Os médicos foram peremptórios. O corte da língua foi apenas uma das muitas sevícias a que foi sujeita.

Deitada no hospital, com os braços ao longo do corpo, fixava os olhos ausentes no tecto.

A polícia chegou. Tinham-na finalmente identificado.

O inspector aproximou-se calmamente do corpo retalhado e chamou:

― Júlia.

As pupilas dela dilataram um pouco. Olhou para o inspector e murmurou, com um assento de cabeça agradecido:

― Uia.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Paula Estêvão

Economista, contista e novelista. O seu sangue possui emoção, hemoglobina, terror, mar, plasma, saudade, e tantos mais sons e cores… Gosta de escrever, ler e mergulhar no oceano. Em 2022, publicou o seu primeiro conto, integrando uma antologia intitulada Nem Sempre os Pinheiros São Verdes II, da editora Poética Edições.

Transporta dentro de si todas as palavras que ainda não escreveu.