Um Belo Arranjo de Flores

De Robson Siebel

 

Tira o dedo da boca.

A voz da mãe foi engolida pelo som do televisor. O menino chegou-se à beira do sofá, com os pés a balançar. O polegar deslizou mais fundo.

Tira esse dedo imundo da boca!

A frase, espremida entre os dentes, terminou com um safanão no braço do menino. O dedo em anzol manteve-se firme na boca; alçou Ricardo ao chão a reboque do braço. Sentiu um ardume no céu da boca, e o gosto acre do sangue acordou-o. 

Ricardo coçou a barba e esfregou os olhos ensonados. Ergueu-se preguiçosamente na cama e removeu o dedo da boca seca. Notou a fronha suja e os lençóis húmidos. Levantou-se.

Enquanto metia a roupa de cama na máquina de lavar, ligou a cafeteira e sentiu um cheiro forte de lavanda invadir a cozinha. Lembrou-se de que era quarta-feira. Abriu a porta do apartamento e torceu a boca. O corredor tresandava a cheiros florais. À sua frente, viu um homem curvado com um esfregão e um balde.

— Olha, não podes usar um produto sem cheiro?

O homem virou-se para ele com cara de incógnita. Ricardo percebeu logo.

— Não falas português, pois não?

O limpador ficou parado, agarrado ao esfregão. Tinha os dedos ressequidos, de onde lhe escapavam unhas grossas, algumas com terra por baixo. Ricardo suspirou e fechou a porta.

Estava na varanda quando viu o homem sair. Não foi difícil segui-lo. Primeiro, o caminho até o autocarro lotado. Depois, o comboio até a última paragem e mais algumas centenas de metros por ruas sujas. O homem entrou num rés-do-chão, e Ricardo esperou que as luzes se apagassem.

Matou-o enquanto dormia, no sofá. Deixou-o ali estirado e começou a cortar-lhe os dedos. Um por um, meteu-os na boca do cadáver. Primeiro, os mais pequeninos, do pé. Depois, os mais longos, cujas unhas avantajadas rasgavam o céu da boca a caminho da goela. Admirou a sua figuração: uma grande flor vermelha, plantada numa mandíbula escancarada. Se alguém se desse ao trabalho de contar os dedos, encontraria apenas dezanove. O último, Ricardo levara consigo.


SOBRE O AUTOR

Robson Siebel

Robson Siebel é natural de Capinzal, uma cidade pequena no sul do Brasil. Conseguiu encontrar uma interseção na carreira de programador e na paixão pela escrita criando jogos narrativos como Blackout: The Darkest Night, também publicado como livro-jogo. Em 2022, teve o seu conto, «O Ovo de Jhan-dih-ra», publicado na antologia Espadas e Feitiçarias. Atualmente, reside em Lisboa, onde trabalha com jogos digitais e escreve contos que vagueiam pela ficção especulativa e pelo realismo mágico.