Uma História para Adormecer
de Álvaro Oliveira
Ora viva, jovens! O que fazeis por aqui, nesta noite tão estrelada? Nunca vos vi por cá… De onde sois?… Ah, ainda fica longe… O caminho de volta é longo, quereis sentar-vos um pouco? Sentai-vos, sentai-vos… Ficai à vontade. Ainda há chá nessa chaleira velha, ao pé da fogueira. Sirvam-se, não sejais tímidos… Não tendes de agradecer, um velho não pode ter melhor companhia do que jovens moços. Ides explorar a nossa aldeia de Woolsworth amanhã? Fazeis bem, não temos muita coisa, mas é sempre bom ter visitas de vez em quando. Pode surpreender-vos, mas temos a maior reserva de sapos do distrito… E temos também a nossa antiga tecedeira, ainda em funções… Nada disso vos chama? Bem, temos outras coisas, mas… é uma longa história. O quê? Oh, não vos vou maçar com isso. Digamos que somos uma aldeia que nunca dorme… Ficastes vós curiosos? Bem, aconchegai-vos melhor então. Vou contar-vos tudo.
Woolsworth é já nascida e criada há mais séculos do que eu sei contar. Como todas as aldeias, as gentes jovens esmeram-se por deixá-la, e os poucos que ficam não chegam para repovoar a nossa zona. Lentamente, tornámo-nos uma aldeia isolada, abandonada por todos exceto pelos locais, que tentaram viver as suas vidas o melhor que puderam, pelo menos até os militares chegarem.
Está claro que não o sabíamos. Acamparam a poucos quilómetros daqui, tão sub-repticiamente que nem as ovelhas deram conta. Só notámos quando já era tarde demais. Quando todos bebemos da água do poço…
Sempre tinha sido límpida e fresca, e nada na sua aparência física tinha mudado. Mas as pessoas mudaram, com certeza. Ansiedade, irritação, desalento… suicídios. Tudo porque, quando fechavam os olhos, não acontecia nada. A aldeia inteira tinha perdido a capacidade de dormir.
E vossemecês perguntais: «como é tal coisa é possível?» O meu miolo está velho e gasto, pelo que talvez percebeis melhor do que eu, mas pelo que me foi dado a entender, está relacionado com uma coisa produzida aqui em cima, chamada melatonina. Essa coisa simplesmente… foi-se. Puf. Adeus, sono.
Toda a gente reagiu de forma diferente, claro. Uns trancaram-se nos aposentos, fecharam janelas, portas, ouvidos e olhos e… nada. Forçaram e berraram e, dias depois, não resistiram. A loucura tomou conta deles.
Outros, no entanto, aprenderam a viver com isso, como quem aprende a andar de bicicleta. A loucura lambia-lhes os calcanhares, mas permaneciam vivos.
Ainda estais acordados, jovens? Não fiqueis aí ao frio, a tremer. Embrulhai-vos nesta manta e deitai-vos confortavelmente. A história ainda vai a meio.
Como dizia, cada um lidou como pôde e soube. Entretanto, alguém acabou por descobrir o acampamento dos militares e lá se dirigiu para exigir respostas. Eles ofereceram-lhe uma escolha: as respostas… ou um sono milagroso.
Foi-lhe apresentada uma seringa com um líquido esbranquiçado, a tal melatonina, capaz de conferir um sono longo e revigorante. As respostas, essas, nunca foram reveladas. Talvez fosse tudo uma experiência, ou um ato do Diabo… Nunca se soube.
No final de contas, o homem escolheu a opção mais fácil, e, em breve, toda a aldeia ficou a saber do sucedido.
Foi o caos. Aos militares, as pessoas davam de tudo para ter um daqueles milagres envidraçados — a família, o corpo e a dignidade, bens, estatuto e residência. Para que servia uma casa quando tudo o que se fazia nela era olhar para o teto a toda a hora, à espera de que o cérebro fosse misericordioso e lhes oferecesse um resquício de sanidade e repouso?
E, por momentos, tudo estava bem. Nas ruas, terras, ou sob os poucos telhados que lhes restavam, as pessoas dormiam profundamente. O problema só recomeçou quando os militares se foram embora.
Sem mais líquido milagroso, o inferno tomou novamente conta da aldeia.
Os que tinham mais posses refugiaram-se nas suas casas, açambarcando seringas. Os com menos matavam-se nas ruas por mais uma gota, mais um minuto de paz de espírito, mais um segundo que fosse até à eventual insanidade.
E, até aos dias de hoje, os que sobreviveram são os do meio. Os que se adaptaram às circunstâncias, que não cederam aos instintos, cujas olheiras pronunciadas vos dirão que a cama não passa de um adorno.
Os poucos de vós que ainda estão acordados direis que é apenas uma história para adormecer, para puxar pela criatividade da mente antes do seu encerramento noturno. Não vos censuro. Um velho como eu não tem muita credibilidade.
Mas então perguntai-vos: se é tudo verdade, como sobrevivi eu? Bem, este velhote tem alguns truques na manga. Enquanto todos se preocupavam em arranjar e guardar as poucas seringas disponíveis, eu preocupei-me em aprender como era feita esta melatonina. A longo prazo, era a única solução.
Quando a presença dos militares ainda era frequente, surripiei alguns livros e equipamentos, entre a confusão provocada pela ânsia dos aldeões. Em casa, estudei e estudei… e percebi que isto não era produzido pelos militares. Era produzido por nós, humanos. Ou animais.
Entre os equipamentos que roubei, descobri uma seringa especial, capaz de reter apenas a melatonina, quando extraída diretamente através do cérebro. Rapidamente a testei em animais, mas, para minha insatisfação, apenas me deram alguns minutos de sono impuro.
Já todos dormis… Ainda bem. Espero que vossemecês tenhais gostado do meu chá. Ouvi dizer que tem um efeito bastante calmante. Se me desculpais, estes velhos ossos têm de trabalhar. Ficai-vos a dormitar enquanto vou buscar o martelo e o formão. E a seringa.
Há muito tempo que não tenho uma boa noite de sono.