Visão Aprazível
de José Maria Covas
Felicitou-se a si mesmo. Depois de tanto tempo no laboratório, jamais pensara que a experiência pudesse ter tão excelentes resultados. Isto porque, após deixar os espécimes andarem pela vila para serem apreciados pelos habitantes, não havia ninguém que não adorasse os animais. Crianças esqueléticas faziam-lhes festas e davam-lhes palha para comer, enquanto velhos escanzelados traziam cutelos afiados para a colheita.
Nunca tinham tido tanta carne para se alimentarem. E o melhor de tudo é que nunca acabaria. Após esquartejados numerosos bifes ensanguentados de bovino, os restantes músculos do corpo do ser vivo trabalhavam em sintonia para reparar o dano. O tecido, assim, era reposto no local esburacado e a ferida sarada, como se nunca ali tivesse havido um corte.
Este processo repetiu-se uma e outra vez ao longo do dia, sem ferir suscetibilidades, pois os bichos não gritavam nem protestavam, tendo supostamente sido criados para sentirem prazer em vez de dor. Contudo, mesmo que o mamífero aparentemente não se queixasse, ainda era necessário realizar mais testes.
Ao cair da noite, as pessoas da vila já tinham distribuído entre si quilos e quilos de lombos gordurosos para satisfazer uma fome monstra. Esta durava há vários meses, desde a morte súbita e misteriosa de todo gado. Não admirava que o tivessem incumbido de arranjar uma solução urgente para a fome dizimadora de familiares e amigos.
Sabia agora que misturar ADN de salamandra com o material genético da vaca gerava comida autorregeneradora e imune a vários tipos de doenças. Tinha, por isso, o dever de levar estes animais a cada canto da nação, aliviando a fome de tantos com esta receita versátil. A invenção talvez até pudesse ser usada para variar a dieta dos seres humanos. Depois de certos ajustes técnicos, não só as vacas como também outras cabeças de gado poderiam ser gostosamente melhoradas a nível industrial. Não podia era esquecer-se daquele pormenor do sofrimento. Sem pressa, claro. Com calma, tudo se resolveria.
SOBRE O AUTOR
José Maria Covas
José Maria Covas, desde que nasceu a 26 de setembro de 1998, sempre tentou compreender a realidade em seu redor e contribuir para a sua evolução. Licenciou-se em Ciências Biomédicas na Universidade de Coventry e fez o mestrado de investigação em Medicina Regenerativa na Faculdade de Medicina e Veterinária da Universidade de Edimburgo. Os seus poemas, contos e guiões conjugam o mistério e o estranho da literatura e cinema com o ocultismo e surrealismo das suas viagens, criando, no processo, o seu próprio universo artístico, que eternamente explora a condição humana.