Voltar a Sentir
de Cláudio André Redondo
Estou vivo?
O peito sobe e desce. Sim.
O telemóvel vibra.
Que horas serão? Parece ser dia, talvez manhã. Ou será tarde? Com os estores tão baixos, não consigo perceber.
O telemóvel volta a vibrar, duas, três vezes. Pondero ver quem é, mas permaneço imóvel, de olhos abertos a contemplar o vazio. Limito-me a existir numa bolha de nada, impermeável ao passar do tempo, das sensações — um pedaço de carne inútil que desperdiça o milagre da vida a ser nulo quando podia ser tudo; uma massa informe, incapaz de sentir, que teima em permanecer viva quando há muito deixou de viver.
«Levanta-te! Mexe-te! Reage! Sente, porra! Sente!»
Mas não sinto.
Esqueci-me de como se faz para sentir.
O telemóvel vibra. Num esforço digno de Sísifo, pego nele. Mensagens da Ana e da minha mãe. Ambas perguntam como estou, parecem preocupadas — ou talvez chateadas. Já não sei distinguir.
«Responde, pede-lhes ajuda. Diz como te sentes.»
Mas não sinto nada. O que haveria de dizer?
Desligo o telemóvel. Vão saber que li as mensagens e não quero que me liguem. Fecho os olhos.
*
Estou vivo?
Se ainda o pergunto, é porque sim.
Parece de noite. Que dia será? Nada mudou.
As imagens passam-me rápidas pela mente.
Se o fizeres, aposto que voltas a sentir. Voltas a sentir-te vivo. Lembra-te da sensação. De como era bom quando o mundo tinha significado. Não queres voltar a ter isso?
Quero, mas…
Não lhe dês ouvidos. Pensa nas consequências!
Preferes continuar assim? É tão fácil voltar a sentir.
Calem-se!
Calem-se…?!
Agora, até discuto sozinho. Pareço um esquizofrénico.
Mas as imagens ficam. Será possível?
*
A água quente cai-me na cabeça. Lembro-me de que, em tempos, isso me relaxava. Agora, é apenas algo que acontece, como tudo o resto. Certifico-me de que a porta do polibã está bem fechada. Tento recordar como era antes, mas não consigo. É como se essa parte do meu cérebro se tivesse desligado para sempre. Espero que a Ana siga as instruções. Não quero que seja ela a encontrar-me. Sei que a amo, apesar de já não saber o que isso significa.
Pego na faca, sei que tenho de cortar na vertical. É para ser definitivo.
Imagino a dor.
Sentir algo, sentir que estou vivo através da dor.
O gume da faca toca-me na pele, uma gota de sangue aparece.
Choro.
Choro porque dói, choro porque me sinto aliviado, choro porque sinto.
Voltei a sentir.
Esboço um ligeiro sorriso.
Fecho os olhos.
*
Estou vivo?
Estou na cama. Não me lembro de ter voltado.
Não sinto nada.
Apenas um vazio infinito que cada vez é mais pesado, mais silencioso.
Fecho os olhos e durmo.
Até quando?
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Cláudio André Redondo
Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.