Entrevista com Ai Jiang e Madalena Santos
A versão portuguesa de «LINGHUN» chegou, pela Barca, em 2025.
«Quis trazer essa ideia para LINGHUN: como seria se os fantasmas fossem diferentes para cada um, e se fossem os vivos a assombrar os mortos?»
LINGHUN, a novela de estreia premiada de Ai Jiang, conquistou o mercado de língua portuguesa em 2025. Publicada pela Barca, com a coordenação editorial de Nuno Gonçalves, e traduzida por Madalena Santos, nenhuma parte da alma do livro se perdeu no processo.
Conversei com Ai e Madalena via Zoom sobre escrita, tradução, fantasmas e família.
Quando o Nuno [Gonçalves] me pediu sugestões de livros de terror para trazer para Portugal, tive de lhe fazer uma proposta, mas não gosto de comparar autores nem livros. Disse-lhe apenas para imaginar uma história da Shirley Jackson, mas que não fosse uma história da Shirley Jackson. LINGHUN é uma história muito local, mas também muito global. Algumas pessoas vão identificar-se mais, mas toda a gente vai compreendê-la. E acho que isso é muito o teu estilo.
Ai Jiang: É engraçado, porque recentemente escrevi o que chamo de «livro do coração», uma novela com oito perspetivas, mas em apenas 30 mil palavras. Foi um verdadeiro despejar de pensamentos. Depois reescrevi-o e transformou-se no meu livro mais recente. Sinto que todos os meus «livros do coração» — e LINGHUN também o foi — têm essa qualidade. Toda a gente que o lê diz que é muito específico, mas ao mesmo tempo universal. Acho que isso é um fio condutor no meu trabalho.
Planeaste isso desde o início? Como começou esta história?
AJ: Escrevi-a primeiro como um pequeno texto de 800 palavras, porque andava a pensar na forma como os fantasmas e as assombrações são retratados nos média, e é sempre o fantasma que assombra os vivos. Quis inverter isso e explorar o contrário: e se fossem as pessoas, os vivos, a assombrar os fantasmas? Sempre que pensamos em fantasmas, pensamos em entes queridos falecidos, pessoas que ficaram presas no tempo. E percebi que as memórias que temos dessas pessoas são diferentes para cada um. Por exemplo, em relação ao meu tio que faleceu, a minha memória dele é muito diferente da da minha mãe, porque eu era muito nova quando o vi pela última vez. O fantasma que vive na minha mente é diferente do dela, que o acompanhou até ao fim da vida. Quis trazer essa ideia para LINGHUN: como seria se os fantasmas fossem diferentes para cada um, e se fossem os vivos a assombrar os mortos?
Também é um drama familiar, os pais têm um filho favorito, e a filha sente-se invisível. A mãe cozinha os pratos favoritos do filho, mas não os da filha. Tens irmãos?
AJ: Tenho, uma irmã mais nova. A nossa dinâmica é engraçada, temos cinco anos de diferença. Nasci primeiro e, na China, tinha muitos primos mais velhos; o mais novo devia ter 14 anos quando eu nasci. Fui muito mimada em pequena. E depois nasceu a minha irmã e fiquei tipo: «O que é isto? Quem é esta nova pessoa?» [risos] Ela não é esquisita a comer, mas eu sou extremamente esquisita.
E aposto que, como no livro, a tua mãe faz tudo o que gostas só para te convencer a comer. [risos] Este livro já foi traduzido para espanhol, português e chinês. Esperavas este sucesso internacional?
AJ: Não, mas era algo que sempre quis, que os meus livros chegassem a leitores de todo o mundo. Tento sempre explorar temas universais ou questões sobre a vida em geral.
A tua escrita também é muito intencional e intensa. Acompanho-te no Instagram e estás sempre com um projeto novo, um livro, um conto. Parece claro que isto não é um hobby para ti. Tens um plano definido ou simplesmente tantas ideias que precisas de as pôr todas cá fora?
AJ: Acho que é um pouco dos dois. Experimentei várias carreiras depois da faculdade: dei aulas, fui coach, e até fiz ghostwriting. E percebi que perco o interesse nas coisas rapidamente, mas, quando encontro algo que me fascina, é como se só existisse esse caminho. Não tenho plano B. O comboio está em andamento e, mesmo que a linha acabe, ele continua. [risos] Tenho muitas perguntas sem resposta, e escrever é o melhor veículo que encontrei para tentar encontrar essas respostas. No entanto, cada vez que termino algo, penso: «Agora, a resposta mudou». E lá vou eu escrever outra coisa com a nova resposta, até mudar de novo.
Outra coisa que admiro em ti é a tua honestidade nas redes sociais, quando falas de rejeições. Lembro-me de uma história tua que foi rejeitada 30 vezes?
AJ: Não uma história só. Num único mercado, fui rejeitada 30 vezes. E uma história em particular foi rejeitada 85 vezes, antes de ser aceite.
Eu, ao fim da segunda rejeição, matava logo a história. [risos] Mas 85 vezes? Como é que consegues?
AJ: Acho que não tem tanto que ver com confiança, tipo «esta história é boa e alguém vai aceitá-la». É mais um «alguém há de aceitá-la se eu insistir o suficiente». Como um vendedor porta a porta que bate a todas as portas até conseguir convencer alguém.
Boa imagem, essa! A tua carreira ficou mais fácil depois de ganhares o Bram Stoker Award em 2023?
AJ: Sim e não. Sim, porque agora tenho mais reconhecimento e recebo convites para antologias e projetos, em vez de ter de submeter constantemente. Mas também ficou mais difícil, porque me tornei muito mais crítica comigo própria. Tenho padrões mais altos e fico menos satisfeita com o meu trabalho, embora reconheça que melhorei.
Madalena, este foi o teu primeiro grande trabalho profissional, certo?
Madalena Santos: Foi uma experiência incrível, honestamente. Ninguém que trabalhe em tradução em Portugal tem quatro meses para traduzir uma novela. Pude fazer a tradução, deixá-la repousar e depois revê-la com calma, para garantir que ficava o melhor possível.
Tiveste de tomar decisões difíceis na tradução ou o processo fluiu naturalmente?
MS: Correu de forma bastante natural. As partes mais desafiantes foram as diferentes perspetivas — são três narradores —, mas, como estão escritas na primeira, segunda e terceira pessoas, consegui entrar em cada uma dessas vozes. E adorei. Gosto muito de traduzir perspetivas e diálogos. São os meus favoritos.
Gostei que tenhas mantido o título original. Como traduzirias LINGHUN para português?
AJ: Em inglês, significa «espírito» ou «alma».
MS: Em português teria sido ALMA, provavelmente.
As pessoas cá estão muito felizes por o livro existir finalmente em português. Mas tu, Ai, nem sempre escreves terror, certo? Também tens ficção científica, como o teu último livro, A Palace Near the Wind.
AJ: É mais fantasia científica. Um mundo secundário com elementos de steampunk. Acho que é assim que o descreveria [risos]. Mas, por razões de marketing, é catalogado como fantasia.
Um dos teus contos, que li recentemente, One Relationship in Four Haircuts, aborda relações abusivas e dismorfia corporal. É difícil para ti escrever sobre temas mais difíceis?
AJ: Normalmente, não. Quando escrevo, distancio-me da história e abordo-a de forma mais psicológica ou filosófica. Não me afeta muito enquanto escrevo. Só depois de terminar é que sinto o peso do que escrevi. Às vezes, escrevo num estado quase de transe e só percebo o impacto depois.
Planeias publicar uma coletânea de contos?
AJ: Curiosamente, foi com uma coletânea de contos que arranjei um agente literário, mas ainda não foi publicada. Está pronta há três anos. Estamos à procura da editora certa.
Quais são os teu próximos livros?
AJ: O próximo sai em abril de 2026 e é a continuação de A Palace Near the Wind. Depois, o meu romance de estreia sai no outono, também pela Titan. Estou muito entusiasmada, especialmente porque o ponto de vista da narrativa é bastante invulgar.
O que dirias a alguém que está a começar a escrever? O que é o melhor e o pior da profissão?
AJ: O pior é o atual ritmo da indústria, tudo é muito lento. Desde arranjar um agente até vender um livro, pode levar anos. Há quem consiga tudo isso em semanas, mas é raro. Muitas vezes, só o conseguem ao sexto livro e, mesmo assim, pode só sair cinco anos depois. O melhor é que o mercado está mais aberto a correr riscos e a aceitar trabalhos mais experimentais, sobretudo no terror. Há muitas editoras pequenas, o que dá mais oportunidades para publicar.
E tu, Madalena? O melhor e o pior de ser tradutora?
MS: O pior é o estado geral da tradução literária em Portugal: é uma indústria lenta e mal paga. Os valores são os mesmos de há vinte anos. O melhor é o prazer que sinto a escrever e a aprender coisas novas. Escolhi a tradução por isso, porque posso explorar um universo num livro e, no seguinte, um completamente diferente. Cada um ensina-me algo novo.
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Sandra Henriques
Sandra Henriques estreou-se na ficção especulativa em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada». Desde aí, publicou contos em várias antologias de terror nacionais e internacionais e contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.





