A escritora Sandra Amado fala-nos da estreia como autora publicada no Sangue Novo e do impacto do terror na sua vida

«Acho que o terror é um ritual de transição, que nos prepara para a vida»

Sandra Amado estreou-se como autora publicada de terror em português com o conto «A Mais Bela Profissão», na antologia Sangue Novo. Nesta conversa, mais do que falarmos sobre o seu processo criativo, como é escrever terror e os seus futuros projetos, falámos aberta e francamente sobre a vida e a morte, o impacto que o terror tem nas vidas dos fãs e dos criadores do género e a ideia estereotipada que (ainda) temos de combater. Sem tabus e sem filtros.

De Sandra Henriques

 

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Como e quando é que acontece o teu primeiro contacto com o terror? Sei que já és fã do género, não chegaste lá por engano.

Sim, já sou fã de filmes de terror desde os 14 anos. Ia ao videoclube com a minha mãe e o meu irmão e víamos filmes atrás de filmes de terror. Éramos capazes de passar uma noite inteira a ver filmes de terror. Além de todos os filmes do Hitchcock que vi também. Tive esse culto e uma mãe que também me maquilhava para as festas de Carnaval. Ela caracterizava-nos [a mim] e aos meus amigos, e depois íamos para o Bairro Alto mascarados. Esse histórico todo, de me mascarar e de ver filmes de terror, comecei a fazê-lo muito cedo. E foi por isso que cheguei aos cursos do Escrever Terror. [Isso] e a experiência difícil da [morte recente] do meu marido, com cancro. Já tinha experiência de escrita criativa antes, mas em francês. Foi depois de ouvir uma entrevista com o Bret Easton Ellis [autor do Psicopata Americano], onde ele dizia que os filmes de terror o preparavam para a vida. Porque, na realidade, as pessoas veem filmes cor-de-rosa e coisas que as fazem sentir bem e não são treinadas para os medos. [O terror] é um género diferente, que fala sobre os sentimentos e os medos humanos. E é isso que as pessoas, às vezes, não estão preparadas [para encontrar]. Nos contos [do Sangue Novo], encontra-se isso. Ou seja, não é um terror de faca e alguidar, é um terror pensado. E é isso que temos de mostrar. Na realidade, [o terror] pode ser uma coisa extremamente inteligente, mas não há uma boa informação sobre o que ele é. É um conceito, se calhar, mal divulgado. Eu vivi um filme de terror, autenticamente. O que eu quero mesmo é viver as emoções e sentir as coisas. Porque, na realidade, a vida é um filme de terror, e o Bret Easton Ellis dizia nesta entrevista que foi isso que os filmes de terror lhe ensinaram. A lidar com a vida real, que muitos [outros] filmes não fazem.

 

É sempre a pergunta que fazem aos escritores de terror: se nós temos algum «problema», porque escrevemos o que escrevemos. Mas já escrevias antes do curso de Escrever Terror?

Eu já escrevia em francês. Primeiro, comecei por fazer uma oficina de literatura francesa, onde a minha professora nos deu muitos livros que acabaram por me influenciar na escrita de terror. Comecei a escrever [em] vários cursos de escrita, mas nunca publiquei nada. Nem escrevia para a gaveta. Tenho imensos diários, mas nunca houve nada com a intenção de publicar. Esta foi a primeira vez e nunca pensei que fosse acontecer, para dizer a verdade. Porque foi uma coisa que aconteceu espontaneamente. Fiz imensos cursos na Escrever Escrever, incluindo o curso de escrever guiões, porque sinto que tenho uma escrita muito cinematográfica e que esse curso me estava a abrir ainda mais as perspetivas. O meu objetivo é ter várias ferramentas para cruzar as coisas. Porque construir personagens não é assim tão evidente, construir um argumento. Mas o Sangue Novo foi a primeira experiência que tive [como autora publicada]. Ou seja, eu faço isto não para ser publicada, mas porque me dá prazer, porque isto se tornou um escape. Arranjei a escrita (porque a doença do meu marido foi durante o confinamento) como uma forma de construir outra pessoa, foi exatamente isso que fiz. E é uma coisa que me dá gozo. Dá-me um gozo enorme criar.

 

E ainda temos as sessões de escrita nas oficinas Teias de Aranha.

Estas sessões que nós temos em conjunto é um pouco o que os surrealistas faziam. Encontravam-se, pensavam coletivamente e depois criavam uma tendência. E eu acho que é um bocado isso aquilo a que estou a assistir [connosco].

 


Para mim, é como esculpir qualquer coisa. Quando estou a escrever, é exatamente isso que sinto: que estou a esculpir uma personagem, uma história, e depois parece que a história fica dentro de mim.


Qual foi a tua reação quando o Pedro [Lucas Martins] te convidou para a antologia?

Fiquei surpreendida, porque não sabia que escrevia bem, essa é a verdade. Ou seja, eu sinto as coisas, mas não sabia que as conseguia fazer tão bem quanto aquilo que queria. Nós podemos escrever, mas não quer dizer que isso seja interessante para os outros. Pode ser interessante para nós, embora, na minha opinião, isso seja muito discutível. Há escritores que dizem que devemos escrever para os outros, mas a Patricia Highsmith, por exemplo, diz que não. Ela tem um livro sobre como escrever livros de suspense, que é um pouco o que eu gosto, do terror com aquele ingredientezinho de enganarmos as pessoas. Desde que aprendi isso, dá-me um prazer enorme criar todo o contexto para se conseguir chegar [à revelação final] e para não ser uma desilusão por parte de quem lê, para não ser uma coisa demasiado óbvia. Para mim, é como esculpir qualquer coisa. Quando estou a escrever, é exatamente isso que sinto: que estou a esculpir uma personagem, uma história, e depois parece que a história fica dentro de mim. É extremamente interessante. Depois, levamos alguns dias a pensar nisso. Mas fiquei surpreendida com esta iniciativa do Pedro. Não estava à espera para dizer a verdade. Pareceu tudo assim muito pouco palpável, e depois a saída do livro, para mim, foi qualquer coisa!

 

E o que achaste da ilustração do teu conto «A Mais Bela Profissão»? Aquela imagem que nós todos tínhamos ao ler o teu conto, ele conseguiu captá-la na ilustração muito bem.

Eu adorei a ilustração do meu conto. Esse conto surgiu numa saída à noite com as minhas sobrinhas. Vi esse personagem e inspirei-me nele. Achei que o Pedro conseguiu captar muito bem aquilo que eu descrevi, aquilo que eu senti [quando estava a escrever a personagem]. Imaginei o que seria para um homem, o que é que ele ia sentir quando visse uma mulher daquelas.

 

Que impacto achas que o Sangue Novo pode ter?

Nós temos aqui contos muito bons, que podiam ser adaptados para o cinema. Mais do que as vendas, estávamos à espera de fazer qualquer coisa interessante.

 

É necessário desmistificar o que é o terror e penso que foi o que tentámos fazer.

Eu acho que o terror pode fazer refletir sobre coisas que estão erradas. Há tanta coisa que se pode fazer no terror. Podes adotar coisas sobre o ambiente, coisas sobre os refugiados, e fazer a sociedade refletir sobre isso. O cinema é muito visual e acho que é essa a informação que as pessoas têm [sobre o terror]. É uma coisa que choca muito porque é muito imediata. E quando estamos a ler, as coisas desenrolam-se muito mais lentamente, e acho que isso tem impacto. As pessoas não conhecem o género e têm o estereótipo de uma coisa que faz sofrer.

 

O que dirias que é escrever terror para ti?

Eu gosto de termos a possibilidade de extravasar [cada] tema e criar alguma coisa nova. Acho que o terror é um ritual de transição, que nos prepara para a vida. No meu caso, gosto de escrever sobre emoções. É uma coisa que me dá gozo, descrever uma situação como se estivesse lá na realidade.

 

Isso nota-se muito na tua escrita, muito sensorial. Quando estou a ler-te, sinto tudo aquilo ao mesmo tempo. 

Eu não sabia fazer isso. Aprendi com a Susana Otão num curso da Escrever Escrever. O facto de te lembrares de coisas tem a ver com memórias. Não consegues meter uma memória dentro de um frasco. A memória está relacionada com os cheiros. Por exemplo, [eu fiz o exercício com os meus filhos e o meu marido], pegámos em canela e cada um escreveu uma história completamente diferente. O meu marido escreveu sobre os pastéis de nata. Eu escrevi sobre as tardes que passava com a minha mãe em Lisboa às compras, e ela [depois] fazia umas papas de maizena com canela por cima. É engraçado como os cheiros nos despertam esse tipo de coisas. A escrita criativa é muito boa para isso, para desenvolvermos os cinco sentidos. Tudo se treina.

 


O objetivo é continuar sempre, não parar.


 

 

Vais continuar a escrever?

Sim. Deixar de escrever está fora de questão. E continuo também a treinar a escrita de guiões. Só se progride na escrita se não pararmos de escrever. As sessões do Teias ajudaram-me a disciplinar a escrita. O objetivo é continuar sempre, não parar. [Apesar deste atropelo] da minha vida, nunca parei de escrever. Muitas das coisas que escrevi foram reais. Sobre a questão da morte e essa sensação, foi exatamente aquilo que vivi. Essas coisas da vida ajudam-te a ter uma sensação mais autêntica daquilo que estás a escrever.

 

E voltar a publicar?

Publicar também. A minha ideia é conseguir escrever alguma coisa que possa publicar e submeter a editoras. Para escrever um livro grande, o que me falta é disciplina.

 

Publicar uma coletânea de contos, por exemplo?

Já tenho muitos e podia fazer uma coletânea de contos. Isso torna-se muito mais fácil do que escrever um romance de raiz, que demora muito mais tempo. Comecei a fazer um livro que começa com um crime e o meu objetivo é conseguir desmascará-los depois no fim. Agora, preciso é de concretizar [essa ideia].

 

Na escrita de terror, também começas pelo fim?

Não, no terror vem o início. Gosto de começar pelo início, mas a história começa na minha cabeça. Normalmente, já tenho alguma ideia e depois vou atrás da história. Sei o que quero fazer e depois começo a pesquisar para tentar concretizar aquilo. A Marguerite Duras diz [no seu livro Ecrire] que quem escreve sabe sempre quando as suas coisas estão mal. Os escritores têm essa consciência. Não precisas de perguntar a alguém, já sabes que aquilo não funciona. Acho que é um bocado isso. Tens de reescrever, reescrever, reescrever. As minhas ideias não vêm de forma organizada, de todo. Aquilo sai como se fosse uma coisa agressiva, uma pulsão. Sai assim como se fosse um momento inspirador e, a seguir, tenho de começar a desenhar o que quero escrever.

 


Acho que devemos falar de coisas que ninguém quer ouvir. É a única forma de a sociedade mudar.


 

Já consegues identificar a tua voz, a tua assinatura?

Sim, já sinto que tenho uma voz e que tenho qualquer coisa para dizer. E uma voz para ser ouvida. Sinto isso. Temos muitas influências, e eu sei que as tenho. Sei que tem a ver com muitos livros que já li e muitos filmes que já vi, mas evito colar-me a alguma coisa. Quero ser autêntica e original. O que gosto é de falar daquilo que sinto e que tem alguma verdade. [Quando] imagino uma determinada situação, investigo para me sentir lá. Tento trabalhar [as minhas emoções] para elas se transformarem em verdade. Há coisas reais que podem ser transformadas em [histórias de] terror, como no conto «A Cave» [publicado na Fábrica do Terror]. Podemos escrever qualquer coisa de terror para sensibilizar alguém que tem este sentimento, é uma coisa poderosa. As pessoas, se calhar, não leem as notícias, mas já prestam atenção se for ficção. Acho que devemos falar de coisas que ninguém quer ouvir. É a única forma de a sociedade mudar.