O realizador Miguel Gomes fala connosco sobre Amelinda, a única longa portuguesa no Fantasporto 2022

«Não é fácil um filme amador conseguir chegar ao Fantasporto, e logo a primeira longa-metragem que fizemos»

A falta de apoios e a ausência de orçamento não impediram Miguel Gomes de realizar Amelinda, o filme de terror português que se estreou no Fantasporto 2022. Foi a única longa-metragem a competir para o Prémio Cinema Português da 42.ª edição.

De Cláudio André Redondo

 

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O realizador Miguel Gomes fala connosco sobre Amelinda, a única longa portuguesa no Fantasporto 2022

«Não é fácil um filme amador conseguir chegar ao Fantasporto, e logo a primeira longa-metragem que fizemos»

A falta de apoios e a ausência de orçamento não impediram Miguel Gomes de realizar Amelinda, o filme de terror português que se estreou no Fantasporto 2022. Foi a única longa-metragem a competir para o Prémio Cinema Português da 42.ª edição.

De Cláudio André Redondo

 

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Como tem sido o vosso percurso profissional até fazerem este filme?

O nosso percurso é muito curto. Até 2019, nunca tínhamos feito nada. Até que surgiu um argumento, comecei a melhorá-lo e decidimos avançar com uma curta-metragem longa de 50 minutos, [O Silêncio]. Falámos com alguns amigos, algum pessoal que sabíamos que tinha algum jeito para representar. Juntámos esse elenco e avançámos para um filme em moldes arcaicos, um bocado amador, mas quisemos dar o primeiro passo no cinema para experimentar. Uma experiência. As coisas não correram assim tão mal. Para primeiro filme, não está mau e ainda passou em alguns locais, como Esposende e Barcelos, e depois decidimos fazer uma coisa mais séria. Avançámos em 2021 para este filme, [Amelinda]. Usámos o mesmo elenco da curta. Basicamente, 70% do elenco é o mesmo.

 

Vieram de que áreas? 

Eu sou da área de música. O Miguel percebe de fotografia, de imagem, de luz. E o Rúben também percebe de mistura de áudio.

 

Foi então uma aventura total!

Foi. Já nos conhecemos há muitos anos, mas foi a primeira vez que avançámos para fazer uma coisa mais assertiva, mais preocupada com os erros, mais preocupada com o elenco. Antes de começarmos a filmar, fomos aos espaços, captámos o som, o vídeo, de forma que depois, ao gravar, as coisas fossem facilitadas. Estudámos várias vezes os espaços antes de fazer o filme, e daí as coisas foram encarrilhando, mesmo com este elenco em que metade são amadores. Nunca representaram sequer em palco.

 

Era uma das nossas perguntas. Vocês não tiveram orçamento. Como é arranjar elenco para um filme destes? Como foi trabalhar com eles, como foi encontrá-los?

No elenco mais amador, [composto por] amigos, nós já sabíamos qual era a função deles e a prestação que eles iam ter no filme. Precisávamos do outro lado mais técnico, para equilibrar. Cheguei a ter uma formação de dramatização onde conheci parte deste elenco. E coloquei-lhes a questão, se estariam interessados a participar n’O Silêncio. Eles gostaram da ideia porque são mais da área do teatro, quase todos. Temos a Marília [Vieira], que é mesmo atriz profissional, já fez filmes. O Fernando [Gomes] também já fez filmes. Temos um ou outro que já estão noutro patamar. Alguns tinham também alguma experiência dos videoclips. Claro que fazer um filme, representar, é 80% mais complexo porque exige concentração, áudio ao vivo, tem de ficar tudo bem, não olhar para as câmaras. Esse elenco estava disponível para fazer um filme mais sério, com a experiência que estávamos todos a adquirir [no Silêncio]. Aceitaram, [mesmo] sabendo que não havia verbas. Não tivemos nenhum apoio da Câmara, [depois de] três reuniões. Negaram quaisquer tipos de apoios financeiros para este filme. Coisa que é pouco vulgar, porque estamos a competir com filmes que têm todos orçamento, apoios camarários, apoios do ICA. Nós, zero. Ou seja, estamos a competir com filmes com [grandes] orçamentos. Claro que é uma discrepância muito grande. No entanto, estamos aqui, temos de dar graças por estarmos aqui. Não é fácil um filme amador conseguir chegar ao Fantasporto, e logo a primeira longa-metragem que fizemos.

 

Reparei que, no final, tinham a duração de 8 ou 9 meses, mas isso é o processo todo, de pré-produção, rodagem e pós-produção?

Nós filmávamos todos os fins de semana. Não havia uma semana em que não filmássemos. Era aproveitar o tempo ao máximo. Até agosto, fizemos só filmagens. A partir daí, até novembro ou dezembro, foi só pós-produção áudio, falas, tudo, efeitos.

 

Achei que os efeitos especiais era o que estava num nível mais profissional, num filme sem orçamento. Como é que foram feitos, de onde é que veio o vosso conhecimento para os fazer?

Isso foi muita hora. Por exemplo, naquela cena em que ela desce de cabeça para baixo, nós tínhamos uma corda de alpinismo pendurada no telhado lá em cima, ela atada pelas pernas, com uma roldana, e eles todos atrás a puxar uma corda. Gravámos aquilo em dois planos diferentes: quando ela desce e quando ela sobe. Mas foi tudo manual, não há cá efeitos digitais porque não há dinheiro para isso.

 

Mas nunca tinham feito nada semelhante?

Nada. Surgiu na hora. A parte da casa de banho, quando ela aparece por cima, parece uma coisa tão simples, mas nós tivemos de meter um móvel com uma tábua enorme para ela se poder deitar em cima com o vestido. Foi bastante trabalhoso. Foi um dia só para a [cena da] casa de banho. Aventurámo-nos nalgumas coisas, mas o resultado foi positivo. Temos de agradecer às pessoas que nos cederam a casa. Depois de ver todas as divisórias, achámos que dava um filme de terror fantástico.

Quantas funções é que acumularam?

Muitas, muitas, muitas funções. Pedíamos a alguém para ficar na claquete. E o resultado foi muito trabalho 100% amador. Não gastámos nada a não ser investimento nas câmaras. Não tivemos nenhum apoio, infelizmente, porque acho que o elenco, pelo menos, merecia qualquer coisa. Custa um bocadinho vindo de uma cidade que apoia quase tudo na cultura.

 

A maquilhadora é profissional? Porque a maquilhagem parecia-me bem.

Ela [Marília] tinha conhecimentos de maquilhagem porque já fez cinema. Ela própria tinha dito que tratava da maquilhagem. Todas as vezes que a Amelinda aparecia maquilhada foi a Marília que a fez. Muito trabalho e tudo pago por elas. Por isso é que eu digo, um filme destes, com tanto empenho e tanto desgaste, e não ter nenhum apoio, uma pessoa fica desmotivada.

 

Eu notei que a coloração estava bastante uniforme, o filme estava muito bom nesse aspeto.

Nós começámos a fazer tratamento de cor e a coisa não estava a funcionar muito bem. Então, decidi falar com algum pessoal muito entendido nesta área, que deu algumas luzes, [e disseram-nos] «sigam este processo e este processo». A partir dali, sabia mais ou menos o que o filme pedia e usei mais ou menos os mesmos moldes para editar a cor. Tivemos também de ter cuidado com a luz, porque as nossas câmaras não eram nada por aí além. Claro que este filme pedia menos luz, um filme de terror pede sempre menos luz para criar aquele ambiente mais tenso. Tentámos que a falta de luz compensasse um bocadinho a falta de qualidade [das câmaras]. Tivemos de jogar com isto, tivemos de jogar com o que tínhamos e com o que não tínhamos para poder estar num nível amador, mas tentar apresentar as coisas de uma forma digna.

 

Isto acaba por ser um processo de descoberta também para vocês. 

Foi uma aventura.

 

E porquê terror?

Eu acho que o filme não é um filme 100% terror. Acho que é um filme que se enquadra no drama. [Juntei] as duas coisas. A vida daquela pessoa, que é um drama, e ao mesmo tempo a raiva dela. Claro que, dali, fazer um thriller ou um policial não ia pegar tanto, com uma casa daquelas. Com essa história já montada, acho que funcionava bem um filme de terror. Mas não é aquele filme de terror como um Shining ou um Exorcista, que são filmes 100% terror. Sou um grande fã do terror, sobretudo dos anos 80, [do] Poltergeist, Shining. Mesmo do Exorcista, que, para mim, é um dos melhores filmes de todos os tempos. Por mim, fazia o Amelinda 2 ou outro filme, mas acho que provavelmente este será o nosso fim.

 

Não há mais projetos?

Não, sem orçamento é muito difícil. Neste filme, já esticámos a corda ao máximo com os meios que temos. Dificilmente, conseguíamos fazer melhor. Com o tempo que perdemos para fazer isto, mesmo perdendo o mesmo tempo, podia melhorar um bocadinho, mas não é aquele salto que gostávamos de poder dar. Para isso, tínhamos de ter pelo menos meios técnicos, precisávamos de boas câmaras, precisávamos de bons microfones. Isso, que é a base de tudo, não temos, para poder avançar e fazer um filme em condições.. Numa entrevista que demos à Rádio Barcelos, pedimos apoios [que não são só por nós], são pelo elenco, são eles que dão nome à cidade. É a primeira vez, disse-me a Beatriz [Pacheco Pereira], que um filme de Barcelos vem ao Fantasporto, e nem isso eles tiveram em conta. Claro que, a juntar a isto tudo, há uma desmotivação muito grande. «Quê, vamos voltar a fazer outro filme?». Com os mesmos meios e para fazer pior ou igual, não vale a pena.

E fazer algo mais pequeno, talvez? Dar um passo atrás?

A questão da curta-metragem é um problema meu, que tenho de ultrapassar. Normalmente, quando uma história é desenvolvida, não consigo colocá-la numa curta-metragem, porque me quebra o raciocínio. Numa longa-metragem, temos um meio, um início e um fim. A coisa [tem de ser] muito bem feita para caber ali em 15, 20, 30 minutos no máximo. Tem de ter um início rápido, um fim rápido e um meio rápido, e ao mesmo tempo cativar as pessoas. E eu não consigo. Se calhar é um defeito meu, um erro. Não sei se o pessoal também alinha muito nas curtas, mas eu não tenho aptidão nem o conhecimento suficiente para poder distribuir o início bem feito com pouca coisa, um desenvolvimento bem feito, também com pouco enredo, e um fim rápido, de forma a que aquilo tenha 30 minutos e que se sinta que é um filme. Acho que não vale a pena. Prefiro as longas-metragens, e esta tem quase duas horas. Também não estava à espera porque, quando projetámos o filme, muitas das cenas eram para ser mais curtas, mas, como não tínhamos a noção do tempo, porque ainda estávamos a gravar e estávamos a editar ao mesmo tempo, achávamos que, se calhar, não ia dar para uma hora e meia. Então, toca a aumentar mais.

 

E ponderam tirar uma formação na área?

Já não temos idade para isso. [risos] Já estamos nos 40. E paciência. Também já não temos. Quando uma pessoa está mesmo focada em continuar em desenvolver aquele trabalho, isso ainda funciona. Mas não é isto que nós [queremos]. Calhou bem. Podia calhar mal e ficava na prateleira e amigos à mesma. Calhou de correr bem, o processo foi estudado, foi trabalhado, foi muito minucioso. Por acaso, já tenho outros argumentos feitos e preparados, mas não era isto que nós queríamos. Depois deste, não há mais nada. A não ser que a Câmara nos ligue e diga «OK, têm aqui dez mil euros para investirem, para tratarem». Aí, sim, avançamos e fazemos.

 

Como é que fazem o balanço desta primeira experiência?

O filme acabou a edição a 12 de dezembro, e disse-lhes «vou enviar para o Fantasporto». Recebi, passadas duas semanas, o e-mail da Beatriz Pacheco Pereira a dizer que o filme estava muito bom e fiquei bastante surpreendido. A surpresa foi nossa. Eu sou grande fã do Fantasporto, costumo frequentar e ver os filmes daqui. Desde os finais dos anos 90 que venho ao Fantasporto e poder estar do outro lado é algo impensável para nós. E foi tudo tão rápido. Agora, vou enviar para outros [festivais como] o Caminhos [do Cinema Português]. Normalmente, esse tipo de festivais, que também apoiam estes filmes, podem ser uma porta para ter mais algum reconhecimento. E tentar fazer com que este filme renda ao máximo. Eu tenho uma banda e a promoção da música é muito mais fácil do que no cinema. É muito mais fácil irmos buscar lucro ou apoios, ou arranjar concertos, do que ter um filme e colocar numa sala ou vender o filme. Talvez seja por estar a começar, mas é diferente. Reparei que, quando fizemos o primeiro filme, nos sentimos ali sozinhos, e com este filme continuámos sozinhos. Ninguém conhece o Amelinda a não ser no Fantasporto, não há reconhecimento. No cinema, é muito mais difícil, dar um passo é muito complicado. Também pela falta de conhecimento dos apoios que possam existir. Mas também não são muitos.

 

E é tirar o maior proveito da experiência.

Sim, claro que sim. A vitória está aqui. Acho que, ao estarmos aqui, neste palco do Fantasporto, o filme já ganhou. Havendo uma seleção bastante restrita, porque eles são bastante exigentes, o filme já ganhou.