Entrevista à equipa da nova edição de «Carmilla»
O primeiro livro da Barca, chancela coordenada por Nuno Gonçalves, tem tradução de Marta Nazaré e design gráfico de Isa Silva.
«Lendo o Carmilla, percebes que há ali muita coisa embrionária, muita coisa que depois surge noutros livros de literatura gótica. Gostei e gosto muito do livro, é um horror muito subtil de que eu gosto bastante.»
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25.00 € (com IVA)No início de 2024, em entrevista à Fábrica do Terror, o autor Nuno Gonçalves já tinha desvendado que estava prestes a lançar uma chancela exclusivamente dedicada ao terror e que o primeiro livro a publicar seria Carmilla, de Sheridan le Fanu. O clássico da literatura gótica foi lançado dia 6 de maio de 2024, com tradução de Marta Nazaré e design gráfico de Isa Silva (que também criou o logótipo da Barca).
Conversei com a equipa que deu vida a esta nova edição sobre o desafio de ser original e fazer um livro diferente que se destaca de todas as versões que já vi até agora. Além de ser de leitura obrigatória, é um verdadeiro objeto de coleção.
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Começo por ti, Nuno. Porquê o Carmilla como o primeiro livro da Barca?
Nuno: Queria começar por um clássico e queria começar pela língua inglesa porque acho que é mais fácil arranjar tradução. Li vários clássicos, [incluindo] Shirley Jackson, Henry James, mas já todos chegaram a Portugal. Nunca tinha lido Carmilla, talvez já tivesse ouvido falar de forma tangencial quando se lê sobre o Drácula. [Este livro de Sheridan Le Fanu] ainda assim passa despercebido. Lendo o Carmilla, percebes que há ali muita coisa embrionária, muita coisa que depois surge noutros livros de literatura gótica. Gostei e gosto muito do livro, é um horror muito subtil de que eu gosto bastante. E depois tem aquele romance sáfico velado, que também é um tema que, se calhar, achamos atual agora, mas sobre o qual já se tinha escrito.
O Nuno referiu que queria começar por um livro em inglês. Este está escrito em inglês do século XIX, por isso pergunto-te, Marta, como foi traduzir este livro.
Marta: Foi um grande desafio. Confesso que, no início, quando o Nuno me fez esta proposta, hesitei um bocadinho, fui ler os meus apontamentos e um livro que tinha, porque estudei o Carmilla na Faculdade. Pesquisei sobre o livro para me inteirar mais do que tinha pela frente e resolvi aceitar, sabendo de antemão que era uma tradução que ia fazer com muita calma. O texto tem frases muito longas, com muita informação pelo meio, parágrafos enormes que temos de ler e nos quais temos de pensar muito bem, lendo várias vezes antes de traduzir. E depois, mesmo na fase de revisão, reler várias vezes para ter a certeza de que percebia bem a mensagem e de que a passava na minha tradução. É desafiante, mas é um livro que vale a pena, é um marco da literatura gótica. Tenho de agradecer ao Nuno por este desafio.
E nota-se, na tua tradução, o cuidado que tiveste com o texto, de forma a que ele possa ser lido em qualquer época, por qualquer pessoa. É um trabalho duro da parte de quem traduz, quase como se tivesses de escrever um segundo livro, a tua interpretação. É importante referirmos isso numa altura em que a tua profissão e a da Isa estão a passar por uma fase complicada com a inteligência artificial. Aproveitando esta deixa, como foi o processo criativo para este livro, Isa? És fã de terror?
Isa: Não gosto de terror, sou fã de livros infantis. Daí que tenha sido um desafio também para mim, por não ser particularmente fã de histórias de terror, ainda por cima sobre vampiros, que é aquilo que, dentro do terror, não consigo mesmo ver. Mas foi curioso que não me senti mal ao ler esta história e ao fazer este livro. Achei a história muito interessante, até bem mais interessante do que a do Drácula. Quando estou a paginar, não estou a ler o livro, mas vou lê-lo agora. Inicialmente, pedi ao Nuno para me fazer um resumo do plot para criar a capa e brinquei com aquele envolvimento das duas personagens principais, aquela transparência em que a Carmilla está a tocar, mas ao mesmo tempo não está. E aquele pormenor vermelho dos dentes que chama a atenção. Para criar um estilo completamente diferente para esta coleção, entrei também dentro do mundo gótico, com os brancos, pretos e vermelhos.
Até prefiro uma capa desenhada por alguém que não seja fã de terror, porque a tendência poderia ser seguir os clichês associados ao género. Por quantas versões passaste antes do conceito final?
Isa: No início, a ideia era pôr as duas caras em frente uma da outra, mas depois comecei a ver que não funcionava. Aí, decidi «vou brincar aqui com a transparência». Diria que foram duas versões até ao conceito final. Isso é algo que a inteligência artificial não conseguiria fazer. Além disso, as pessoas esquecem-se de que a inteligência artificial é baseada em direitos de autor de outras pessoas. E, já agora, queria aproveitar para dar os parabéns à gráfica, porque também ela teve um desafio. As transparências, as folhas pretas [que separam os capítulos], os blocos de texto com vários tipos de letras. Tudo isso dá um ar de mistério ao livro. Mas eu entrei para a Vírgula d’ Interrogação precisamente porque gosto de fazer coisas fora da caixa, e o problema é que eles alinham nessas ideias. [risos] Agradeço imenso essa liberdade e essa confiança, claro.
A tradução não é uma tarefa só técnica, que produz um resultado que pode ser simulado por uma ferramenta. Como é o teu processo de tradução, Marta?
Marta: Começo por ver quantas páginas tem o livro e organizo-me por semanas. Depois, divido-as num certo número de páginas por dia. É assim que avanço na tradução sem me cansar [do texto].
Qual achas que foi o maior desafio do texto? Há muita diferença no vocabulário, por exemplo?
Marta: Alguns termos do século XIX relacionados com as profissões. Tive de fazer alguma pesquisa para traduzir os nomes corretos. Uma das partes mais difíceis relacionou-se com as formas de tratamento, porque há uma formalidade que já não existe, até nas diferenças de tratamento entre as várias hierarquias. Foi complicado. Tive de ponderar e pensar bem, de forma a que o texto ficasse claro, que se percebesse a intercalação entre narrador e os diálogos. Houve alturas em que tive de me afastar do texto porque já nem percebia bem qual das personagens estava a falar. E, claro, a nossa escrita, atualmente, é menos elaborada, mais fluida.
A Barca surge como uma pedra no charco. Quando demos a notícia do nascimento da chancela, foi uma das publicações nas nossas redes sociais que gerou mais interações e entusiasmo. O que significa que havia muita gente à espera que isto acontecesse. Nuno, estás preparado para lidar com o sucesso futuro?
Nuno: Eu sei que não estou preparado. [risos] Recebemos muita atenção por parte da imprensa e já começámos a receber algumas submissões espontâneas. Não estava à espera de receber tanta atenção tão rapidamente, mas isto é a visão da Diana [Almeida]. Depois de montar a Vírgula [d’Interrogação], que não seria para estar ligada ao terror, ao fim de pouco tempo ela percebeu que havia um espaço que não estava ocupado. Acho que foi por influência da Fábrica também.
A partir do momento que vocês abrem portas como uma chancela assumidamente dedicada ao terror, seria de esperar essas submissões espontâneas. Qual é o livro que se segue?
Nuno: O próximo é Henriqueta [de A. J. Duarte Júnior].
Isa: Estou a paginar neste preciso momento! Este vai ter quatro ilustrações interiores em folhas transparentes.
Nuno: Eu queria um clássico de terror português, mas não há muitos. Há vários contos de literatura gótica publicados por autores portugueses e que já estão publicados em várias coletâneas, mas um livro clássico de terror português é muito difícil de encontrar. Eu li dois ou três, assim um bocadinho obscuros, e gostei muito do Henriqueta. Não tanto pela escrita, mas a história é muito interessante. É baseado numa personagem real, uma malfeitora no Porto, que se vestia de homem e comandava uma quadrilha. A história anda um pouco à volta, também, de um romance velado entre duas mulheres, assim como Carmilla. Achei interessante publicar um livro que tivesse algumas parecenças. Além disso, o Henriqueta estava mais ou menos perdido. Havia uma edição de há dois anos feita em autopublicação, sem distribuição nem apoio de uma editora. Acho que é um livro que merece estar presente, que merece que as pessoas consigam comprá-lo.
Vais manter a estética neste segundo livro, Isa?
Isa: Sim, acho que se deve manter. A capa do Henriqueta não brinca com transparências, mas brinca com os mesmos brancos, pretos e cinzentos e vai ter um apontamento vermelho. Está dentro do mesmo estilo de Carmilla, até para que haja uma continuidade em termos de coleção. A única coisa nova aqui, e que o Carmilla não tem, são as ilustrações no interior, baseadas nas ilustrações originais de 1877.
Uma das afirmações a que algumas pessoas prestaram muita atenção num dos artigos que saíram foi a tua referência a um autor contemporâneo português que a Barca vai publicar. Foi uma revelação intencional, Nuno?
Nuno: Foi intencional. Não tenho problema nenhum em dizer as coisas. O meu problema é criar expectativas que depois posso demorar meses a cumprir. Porque eu gostava que o Carmilla já tivesse sido lançado há mais tempo. Era para ter saído no final de 2023, mas acabou por não acontecer. Com este autor contemporâneo português, acho que as coisas estão bem encaminhadas.
Sem criar expectativas, qual é o plano para o próximo ano?
Nuno: Sem criar expectativas, quero continuar a coleção dos clássicos e continuar a convidar a Isa para o design. Queria tentar fazer um livro clássico por ano. Queria fugir à língua inglesa, mas também não é fácil, não há muitos clássicos e há também alguns que ainda não estão em domínio público. Posso dizer que já comprámos os direitos para o nosso primeiro livro de um autor contemporâneo estrangeiro e que estamos já à procura de tradutor.
Disseste que já começaram a receber algumas submissões espontâneas. É uma vertente que ponderas explorar na Barca?
Nuno: Não estamos fechados a submissões espontâneas, por isso, se quiserem, podem enviar. Em breve, vamos comunicar o que nos devem enviar e como, porque já recebemos algumas. Neste momento, não estamos a publicar muitos livros por ano, por isso a maior parte [dos manuscritos provavelmente] será rejeitada. Mas penso que isso faz parte e que acontece em todas as editoras.
Sim, é perfeitamente normal.
Nuno: Mas, sim, já estamos abertos a publicar submissões espontâneas.
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Sandra Henriques
Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.