Entrevista ao autor Nuno Gonçalves

Vencedor do Prémio António de Macedo 2022.

«Eu não tinha um género, não sabia o que é que queria escrever, queria ver o que é que saía. E o que saiu foi sempre terror, foram sempre finais negros. Não consigo escrever um final feliz, só se me obrigarem.»

Sandra Henriques

O nosso livro está à venda!

Médico oftalmologista de profissão, Nuno Gonçalves entrou pelo mundo da escrita há cerca de três anos. Em parte, impulsionado pela mulher, a também autora Patrícia Lameida (pseudónimo que Diana Almeida escolheu para a sua carreira literária). Desde aí, já produziu muitos contos, alguns publicados em antologias, tendo também publicado o seu romance de estreia, O Pacto, a obra vencedora do Prémio António de Macedo em 2022. Tem um sentido de humor negro que, sem querer, transborda para algumas das suas personagens e, confessou-me, tem dificuldade em escrever finais felizes credíveis. Dele, só podem esperar mais textos com a sua assinatura de autor muito própria (apesar de ele ainda não sentir que a tem).

 

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A tua área é a Medicina, és um médico oftalmologista que escreve terror (pelo menos, por enquanto). Quando é que decides dar o salto para a escrita de ficção?

Ainda não considero um salto, porque não altera nada a minha vida profissional. Altera sim, e muito, a minha vida privada, porque me tira todo o tempo livre. É a única maneira que tenho de produzir alguma coisa. Mas era uma vontade que eu tinha desde sempre, porque sempre gostei de ler, e é aquela coisa de também querermos escrever alguma coisa assim, o que aconteceu na pandemia. A [minha mulher] Diana fez um curso de escrita criativa, online. Ela perguntou-me se eu queria ir e, na altura, achei que não precisava de um curso [desses]. [Era aquela ideia de] se quiser escrever, escrevo; isso não se ensina. Mas vi o resultado final, no conto que ela escreveu no fim do curso, e fiquei com inveja. [risos] Fiz, depois, o curso, que me deu ferramentas e me ajudou, mas acima de tudo foi o empurrão para começar a participar em concursos, a escrever contos para submissões. Depois, começas a tomar-lhe o gosto.

A Diana «pica-te» muito para fazeres as coisas, e é uma dinâmica muito boa entre os dois. Mas ainda bem que tens essa humildade de perceber que o curso te ajudou, que fez sentido, que te permitiu entrar nesta rotina de escrita. E não foi há tanto tempo como isso.

Não, isto foi há três anos. 

Entre o começar a escrever e o escrever terror, foi tudo ao mesmo tempo? Começaste logo a escrever terror?

Eu não tinha um género, não sabia o que é que queria escrever, queria ver o que é que saía. E o que saiu foi sempre terror, foram sempre finais negros. Não consigo escrever um final feliz, só se me obrigarem. [risos] Mas não me considero um fã ou um leitor de terror. O primeiro conto de terror que decidi escrever especificamente foi para a Fábrica. Pensei: «vou escrever um conto sobre arrancar olhos, que até liga bem com o meu trabalho e é divertido». [risos] Mas antes disso, o tom [dos meus contos] já era um bocadinho aquele, e a Fábrica também tem vindo a alimentar esse lado. Quando decidi escrever para o Prémio António de Macedo, decidi que ia ser de terror com um pouco de fantasia. Tinha lido As Sombras de Lázaro, que me inspirou também.

Tens sempre um toque de sentido de humor, de dark humor. A tua própria personalidade também puxa para esse lado. Dizias, há pouco, que para ti é mais difícil escrever um final feliz. Porquê?

No geral, não existem finais felizes. É só uma questão de continuares a contar a história. Vamos morrer todos, um dia, e o mundo vai acabar. Não há um final feliz. Só se parares a história a meio. [risos] Mas não é a questão de ser difícil escrever um final feliz, até acho que é fácil. É só difícil torná-lo interessante, para mim. E os finais que nos marcam até podem ser felizes, mas não é aquela felicidade do viveram felizes para sempre.

Nota-se que tens uma forma muito racional e pensada de escrever, mas é uma escrita muito orgânica, não estás a forçar absolutamente nada. Isso é algo que aprendeste nas oficinas de escrita criativa ou é uma coisa tua? Que parte da tua escrita é 100% orgânica, em que te deixas ir? Como é o teu processo?

Não consigo escrever sem saber o que vou fazer. Tenho de ter a história mais ou menos montada, pelo menos um início e um final. O estilo da escrita é muito orgânico, é difícil de te dizer por que motivo escolho aquela forma de contar a história, vai saindo naturalmente, mas claro que o naturalmente tem a ver com todas as influências que temos. Fiz várias oficinas de escrita, porque ficamos quase viciados, parece que não estamos a procrastinar e que estamos a progredir na escrita. A maneira como lemos também passa a ser diferente, porque também estamos a tentar interpretar. Não sei se já se considera que eu tenho um estilo próprio…

Tens. Posso assegurar-te que tens. [risos]

E ele vai continuar a evoluir também.

Sim, claro. As oficinas obrigam-te a escrever, mas acho que és muito disciplinado com a tua escrita. Não sei se procrastinas muito. Sei que escreveste O Pacto em 30 dias.

Na média dos escritores, não devo estar muito mal, porque sentar a escrever é uma atividade que dá para muita distração. Tento ser disciplinado, mas sinto que podia ser muito mais. Neste momento, estou sem rotina de escrita, vou escrevendo quando posso. Já tentei levantar-me às cinco da manhã, funcionava mesmo muito bem, mas é difícil manter. Comigo, funcionam muito bem os prazos dos concursos.

Tens um projeto de 52 histórias, que acho que te auto-impingiste para te obrigares a escrever um microconto por semana. 

Participei no campeonato de escrita criativa do Pedro Chagas Freitas, que consiste num desafio por semana, e em cada semana tens de escrever um texto com 300 palavras. Tirei de lá ideias que depois resultaram em contos, outras que gostaria de passar para romances. No final do ano passado, estava numa fase em que achava que estava sem ideias, sem vontade, e decidi que ia fazer o mesmo que tinha feito no campeonato: uma história por semana. Daquelas resoluções idiotas para o ano seguinte. [risos] Mas tenho conseguido cumprir mais ou menos, apesar de ter falhado algumas semanas. O obrigar-me a pensar numa ideia ajuda-me a criar histórias. O Pedro Lucas Martins disse isso no vosso Instagram live: se estivermos à espera de inspiração, ela vai aparecer uma vez de dois em dois anos. Se andares à procura [das ideias], elas estão em todo o lado. 

Como é que surgem as tuas ideias? Pelas personagens, pela situação?

Qualquer uma dessas, mas não costuma partir da personagem, costuma partir da situação. Vou notando que há temas que são recorrentes, como as relações humanas entre casais, entre pais e filhos, penso que o maior terror está aí. O maior terror está na traição dessas relações de confiança, no amor que se transforma em ódio. Mas às vezes há histórias que surgem das personagens, como no primeiro conto que enviei para a Fábrica, [«Coração que Não Sente»]. 

Concorres a vários prémios como forma de te obrigar a escrever para aquele prazo. É pela disciplina ou pelo reconhecimento?

Inicialmente, era para me obrigar a escrever. Claro que, a partir do momento em que envias, tens aquela esperançazinha de que podes ganhar alguma coisa. Por outro lado, se algum dia quiser enviar um livro para uma editora, se já tiver recebido um prémio literário, talvez isso me abra alguma porta. Felizmente, durante um ano e meio, não ganhei nada. [risos] Mas, se nos focarmos naqueles que ganhei, se calhar o Prémio António de Macedo é o melhor, porque te dá a publicação de um livro e te coloca no mercado de certa forma. O [concurso] de flash fiction [da EACWP] participei por tua causa. [risos] 

Vais voltar a concorrer para esse concurso de microcontos? 

Vou, claro.

Como é que é o teu processo de escrita para esses contos de 100 palavras?

No geral, escrevo textos pequenos, com poucas descrições, perco-me pouco em divagações. Quando tenho o texto, não saio muito longe do número máximo de palavras. Não demoro muito a escrevê-lo; demoro muito a pensá-lo. Normalmente, quando me sento a escrever, é muito rápido. Já quando foi para o Prémio António de Macedo, sentei-me no dia 4 de junho para escrever um livro que tinha de ser enviado até ao dia 30 de junho. Mas já o tinha todo pensado, tinha as personagens desenhadas, tinha a estrutura construída, e isso ajuda bastante. E funciona da mesma forma para o processo do flash fiction, porque, se não tiveres uma ideia coerente, é difícil contares uma história em 100 palavras. 

Há alguma ideia que descartas e já não voltas a agarrar?

Quase todas. [risos] Mas há algumas das quais eu gosto.

Tens essa consciência, desse equilíbrio, nem és demasiado crítico com a tua escrita, nem achas que todos os teus textos são espetaculares.

Se tiveres só uma ideia, tens de te agarrar a ela. Não tens mais nada. Por isso é que acho que é bom teres muitas ideias. As boas vão surgir no meio das más.

Quanto tempo antes é que começaste a preparar a história d’O Pacto?

Dois meses, talvez, antes de começar a escrever. Por isso, são três meses de trabalho e mesmo assim é pouco, acho eu. 

Depende. Se já tiveres a história muito estruturada na cabeça, se calhar mais vale teres pouco tempo (no sentido de não te poderes «esticar» mais).

Nunca terminas, acho eu. Corres o risco de nunca sentires que está bom o suficiente para ti. E ali, tinha até à meia-noite daquele dia para enviar. Para este romance, comecei com a ideia normal do pacto com o Diabo, em que a pessoa troca a própria alma por qualquer coisa. Eu gostava de fazer isso, mas com almas alheias, que acho que dá um dilema mais giro. E queria misturar isso com o dia-a-dia, com personagens que não fossem super-heróis, mas pessoas normais, com problemas normais.

Pessoas normais e — eu não sei se fizeste isto de propósito — com nomes perfeitamente banais. O Amadeu podia ser o vizinho do lado, que é médico, e que por acaso fez um pacto com o Diabo no banco de jardim aqui em frente. Isso foi propositado?

Foi. Por isso é que não há nada que identifique a terra onde se passa a história, porque gostava que o leitor se conseguisse pôr no lugar das personagens. Tens a premissa, mas precisas de ter uma história que prenda o leitor desde o início, e fiz esse trabalho antes de começar a escrever. Curiosamente, não tinha o final definido quando comecei, e ele surgiu através daquela banalidade de as personagens decidirem o que ia acontecer. Mas foi o que aconteceu mesmo.

Desviaste-te muito da tua ideia inicial ou foste meticuloso e seguiste todo o teu plano à risca? 

O final, o último capítulo, foi decidido muito próximo. E há uma personagem que não era para regressar, mas gostei tanto de a escrever que ela acaba por voltar, e ajuda também a compor a história.

O livro já vai na segunda edição, e num mês, o que é um feito para um romance de ficção especulativa de uma pequena editora independente e de um autor (ainda) desconhecido.

A primeira edição foi pequena, mas seja como for fico feliz. Não esperava vender muito, porque o mercado é assim e também sou um autor desconhecido. No fundo, é sempre um superar das expectativas. Apesar de ser uma edição pequenina, abri champanhe na mesma. [risos] Agora, vamos tentar esgotar a segunda. [risos]

É difícil receber feedback dos leitores, mas temos a vantagem de pertencer a uma comunidade de escritores. Tens esse apoio, sentes que te vão apoiando mesmo que não gostem de terror? Apoiam o Nuno Gonçalves, autor?

Sobre o feedback, quando escrevi o meu conto durante a primeira oficina, a Analita [Alves dos Santos] sugeriu que o enviasse para várias pessoas que estavam no mesmo curso, e eu fiquei aterrado. [risos] Quando recebi os e-mails de feedback, deixava de respirar antes de abrir. [risos] Depois, fui-me apercebendo de que é muito pior não me dizerem nada do que criticarem, é muito pior o silêncio do que a crítica. E daí que também goste tanto de ir à Via do Medo, porque temos sempre uma oportunidade de receber feedback. Com o livro, estou a sentir isso. Gostava que me dissessem mais coisas. Vou tendo [feedback], mas é lento e é pouco, a projeção também não é muita. Vou tentando, mas também não sou de me expor muito, vou fazendo o possível. Sobre o apoio que damos uns aos outros, acho que não somos concorrência uns dos outros. Acho que estimulamos a leitura uns dos outros. Se alguém ler um bom autor de terror português, vai querer procurar outros bons autores de terror portugueses. Se nos criticarmos, se formos divas, se deitarmos abaixo, acho que é mais prejudicial do que nos apoiarmos. Falei disso ontem com a Diana, nos prémios de terror do Goodreads, para além dos anglo-saxónicos, há muitos livros em espanhol, sul-americanos. Parece que há uma moda, e o facto de haver uma moda vai gerar interesse das pessoas a procurarem o que vem desses países. Talvez um dia perguntem o que está a vir de Portugal. 

O Mário Coelho, que escreve mais weird fiction do que propriamente terror, tem sido muito publicado no estrangeiro, por exemplo. Acho que, havendo autores portugueses que vão publicando lá fora, será uma questão de tempo até as pessoas começarem a ler mais terror português. O vencedor do Prémio António de Macedo de 2023 é um romance com elementos de terror, portanto já são dois anos seguidos com terror em português. E o Nuno Ferreira, que ganhou, costuma escrever fantasia, mas escolheu escrever terror. Acho que, em breve, vai haver uma geração estabelecida de novos autores de terror português. E o teu próximo romance?

Estou a tentar escrever um policial, apesar de não ter elementos de fantástico, mas foi uma ideia que tive. Estou a meio. Em vez de um mês, já vou em oito meses, portanto é um ritmo normal. Vai ser um policial um bocadinho negro.

Se não fosse, não achava normal. Para este, seguiste o mesmo processo criativo d’O Pacto?

Sim, mas a rotina está um bocadinho desmanchada. 

Confesso que isso me causa um bocadinho de ansiedade, mas há autores que partilham diariamente nas suas redes sociais quantas palavras escreveram naquele dia. Detesto contar palavras. Fazes isso e funciona contigo?

Sim, eu sou das ciências, por isso é matemático. Tenho de escrever quarenta mil palavras, tenho X dias, por isso dá X mil palavras por dia. É exatamente isso.

Ficas frustrado de não atingir esse limite diário?

Não fico frustrado, mas fico aborrecido. No dia seguinte, tenho de escrever mais um bocadinho, para compensar. Não gosto de partilhar o work in progress nas redes sociais, mas, na altura em que estava a escrever O Pacto, escrevia três mil a quatro mil palavras num dia. E depois havia dias em que não saía nada. Mas, se esses dias em que não sai nada te impedem de prosseguir no dia seguinte, depois é difícil. Podes falhar um dia, não podes é falhar dois seguidos. 

Há autores que se treinam a eles próprios para ver quantas palavras conseguem escrever numa hora, por exemplo. Ligam o despertador, desligam tudo o que seja distração e vão tentando superar-se todos os dias. Claro que tens de ter tudo muito bem planeado. Tu limitas o teu tempo?

Gostava muito de conseguir fazer isso, tirar três ou quatro horas por dia para escrever duas mil palavras, ou algo parecido. Mas também sei muito bem o meu ritmo. Se estiver a andar bem, consigo mil numa hora, por isso só precisava de 50 horas para escrever um livro numa semana de trabalho. [risos] O segredo é mesmo cumprir uma média diária, porque, se não tiveres uma rotina, os afazeres diários metem-se à frente.  

Em relação a outros projetos teus, podemos já oficialmente falar d’A Barca, uma chancela da Vírgula de Interrogação que vai ser totalmente dedicada ao terror?

Podemos, sim. Não existe, em Portugal, uma chancela dedicada ao terror. O terror está espalhado por várias editoras, não sabes onde hás de procurar. Foi ideia da Diana e é uma aventura enorme. 

Mas deste o primeiro passo e isso já é importante. Como é que chegaste à seleção dos primeiros livros a serem publicados?

Queria publicar inicialmente dois clássicos, por uma questão de custos, confesso. Posso revelar já que o primeiro será Carmilla, [de Sheridan Le Fanu], que, apesar de ter edições já em português, não tem sido reeditado. Está meio perdido. E este é um daqueles livros que não devia desaparecer, devia estar sempre presente, como o Dracula ou o Frankenstein. E depois queria um português, que não há muitos. Há algum terror clássico português, mas em contos. Acabei por escolher o Henriqueta ou uma heroína do séc. XIX, [de A. J. Duarte Júnior], que liga bastante bem com a Carmilla, curiosamente. São duas personagens femininas fortes e acho que ficam dois bons primeiros lançamentos. Daqui para a frente, gostava de primeiro conseguirmos publicar autores portugueses, alguns clássicos que estão também esquecidos. E alguns contemporâneos estrangeiros que têm dificuldade em chegar a Portugal. Porque os americanos vão chegando, os mais populares, mas tudo o que não seja em inglês é difícil de chegar cá.

Faltava a pergunta (acho eu) provocatória para fecharmos a entrevista: algum género em que nunca escreverias?

O romance amoroso, histórias de amor. Como não leio o género, não me vejo a escrever nele. Um livro erótico também não está nos planos, apesar de o meu conto [«O Óbolo de Caronte»] na antologia Des/Pudor misturar um pouco dois géneros diferentes. Mas não me vou cingir a um género. Se tiver uma boa ideia para fantasia, para ficção científica, para um romance realista, escrevo. Mesmo com O Pacto, já tive gente a dizer-me que não é terror, é fantasia. Se calhar, pode ser considerado um thriller sobrenatural.