Entrevista a António F. Nabais e Rui Correia

Os autores da coleção Contos Arrepiantes lançaram o 5.º e último volume da série.

«O que estes livros dão às pessoas que os lêem é a noção de mundo, a ideia de que há outros espaços, há outras culturas e há outros tempos.»

Por Marta Nazaré e Sandra Henriques

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Marta Nazaré

A coleção Contos Arrepiantes da História de Portugal foi uma das primeiras sugestões de terror infantojuvenil da Fábrica do Terror. Há mais de um ano que tínhamos curiosidade em saber o que tinha levado os seus autores (os professores António Fernando Nabais e Rui Correia, e o ilustrador Hélio Falcão) a juntar o terror à História de Portugal. Aproveitámos o lançamento do 5.º e último volume da coleção, República Reprimida, para conversar sobre este projeto e o que vem a seguir. E sempre com imenso sentido de humor.

 

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Sandra Henriques: Como nasceu a ideia para esta coleção?

António Fernando Nabais: A culpa é do Rui. [risos]

Rui Correia: A coleção começa há muitos anos, porque comprei em Londres um livro chamado Horrible History. Eu, tal como o Fernando, ia colecionando histórias mais ou menos lúgubres, sinistras e macabras que a nossa história nos foi sempre legando. Nem era tanto por achar que os miúdos gostam de terror, mas porque também acho piada a isso. Gosto de ter medo e pago para ter medo. Uma das coisas que a história tem é que é horrível, é uma das suas principais características. E, à medida que vamos estudando mais detalhes e mais casos que nos vão aparecendo, gostamos de os utilizar não apenas para chamar a atenção dos miúdos, mas para nós próprios nos divertirmos nas aulas que estamos a dar. Um dia, a editora propôs-me se estaria interessado em fazer parte de uma coisa diferente, com humor, e eu lembrei-me desse projeto antigo. O projeto nasce nesta linha, de uma absoluta consonância com a editora (através da Joana Gonçalves, da Penguin/Nuvem de Tinta), e trouxe para isto o [António] Fernando Nabais. Nós gostamos que os miúdos se divirtam, gostamos de nos divertir, em primeiro lugar, e é muito importante que haja rigor. E o António também gosta disso, que as coisas sejam rigorosas e que não tenhamos de inventar nada de especial. Achámos que o livro tinha de ser ilustrado e convidámos o Hélio Falcão, que tem os mesmos problemas mentais que nós, e juntou-se o útil ao desagradável. [risos]

SH: Já se conheciam então antes desta coleção, autores e ilustrador?

RC: Não, o Hélio foi uma convergência cósmica. Inicialmente, estava com algum receio porque o portefólio dele é muito variado. Ele consegue ter muitas linguagens diferentes, e estávamos muito intrigados sobre qual seria o registo a adoptar no princípio, tanto quanto o registo que nós iríamos ter no texto. Porque é importante saber que a história fala de pessoas, e temos de ter respeito pelo sofrimento, portanto tem de se fazer as coisas com tacto, com elevação e com elegância, e com muito sangue e tortura à mistura, e muita dor e muitas feridas abertas.

Marta Nazaré: A vossa coleção tem um equilíbrio muito bom entre o texto e a ilustração. Estou a ler coisas horrorosas, mas não fico chocada, porque as coisas estão contadas numa linguagem simples.

RC: Tens razão, era dentro dessa linha que queríamos que acontecesse, não ter medo, por exemplo, de fugir completamente à verdade histórica. Às vezes, fugir à verdade histórica é a verdade histórica. Chamamos a isso lendas, por exemplo. Não recusámos a integração de algumas lendas e mitos porque isso fez parte. Sempre que se fala do terror, toda essa invenção que se cria, alucinada e completamente excessiva, é um discurso e tem materialidade, existe, é real. Isso interessou-nos também, e gosto muito quando o Nabais traz literatura para dentro destes livros. Há literatura em todos os livros e isso é muito importante. Sendo conceções mais ou menos imateriais, são coisas que existem e que influenciaram a mentalidade das pessoas, que alteraram muitas vezes o curso da própria história, porque uniram pessoas. A ideia de pátria é completamente imaterial e, no entanto, é extremamente conveniente e oportuna em circunstâncias em que temos de estar unidos, seja na Seleção, seja a matar o próximo. As canções, por exemplo, são importantíssimas formas de podermos caminhar e, enfim, enfiar o garfo no olho de alguém.

AFN: É fundamental. [risos]

MN: Nestes Contos Arrepiantes, não houve nenhuma necessidade de puxar mais para o terror, porque relatam as coisas tal como elas aconteceram?

AFN: Diria que sim. Às vezes, basta mesmo só contar a história, porque ela, só por si, já é horrível. Esta ideia, no fundo, não é muito diferente do que nos acontece nas aulas, a de tentar que os miúdos estejam interessados em coisas de outras épocas. Isso, por vezes, só se faz através do espanto e do terror, digamos assim. Esta experiência que eu tenho em Português, e que o Rui tem na História, disciplinas que se cruzam muito, também está muito relacionada com esse quase escândalo relativamente àquilo que acontecia noutras épocas. Quando uma pessoa fala sobre a condição feminina a miúdas do séc. XXI, chego a ter motins dentro da sala de aula. Só precisamos de recuar duas gerações para ficarmos completamente escandalizados com a história, por isso é muito simples: basta contá-la. Este último volume fala sobre algumas proibições que eram impostas pelo Estado Novo, que para nós são espantosas, desde a licença para usar isqueiro até à proibição para estarem juntas mais de três pessoas, ou ao facto de as mulheres casadas precisarem de autorização do marido para se ausentarem do país. Felizmente para nós, isso é inaceitável.

SH: Era como uma distopia que não aconteceu assim há tanto tempo.

RC: Era exatamente isso que era, uma distopia. Não devemos pensar que as distopias acontecem lá longe, no séc. XXVI. Nós habitámos essas distopias todas. Algumas dessas proibições eram contrárias àquilo que o regime tinha interesse em fazer. Era literalmente uma distopia.

SH: A editora teve bastante abertura para o tom desta coleção. Nunca tiveram receio de que esta ideia não fosse bem recebida?

AFN: O melhor que nos podia acontecer era haver muita gente a proibir a leitura dos livros. Isso, comercialmente, era espetacular. [risos] No segundo volume, tive uma reação de um colega meu, que tem um miúdo pequeno, mas que comprou os livros para ele próprio ler. Os livros são lidos tanto por miúdos, como por adultos. E ele perguntou-me exatamente isso: «isto é mesmo para miúdos? Isto é violento e tem histórias brutais». Claro que o objetivo é contar essas histórias e não as outras, portanto, quanto pior, melhor. E depois também temos de confiar no discernimento dos próprios miúdos e dos pais que acompanham estas leituras.

RC: Nós temos um texto sobre a presença portuguesa no Japão, que é o texto mais violento de todos, porque é tirado diretamente das fontes. É dos textos mais literais que temos na coleção, que se chama a Batalha de Namban-Jin, e que vem na sequência de um trabalho feito por um aluno meu para a Coca-Cola, que estava a inaugurar o seu museu em Tóquio. [A empresa] abriu um concurso internacional para que as crianças escrevessem sobre a relação do seu país com o Japão. Como eu sabia que a nossa relação tinha sido catastrófica, decidi escrever não sobre as boas relações, mas sobre as péssimas relações entre Portugal e Japão. Foi dessa investigação que surgiram algumas dessas ideias. Portugal tem uma quantidade de fontes primárias, literárias, que dispensam qualquer ornamentação. Tudo aquilo está minuciosamente detalhado, aquilo que na literatura se chama de pormenores autenticadores, que mostram que se está a falar de coisas concretas. Degolar as mães à frente dos maridos e dos filhos, enquanto as crianças andam a apanhar flores para lançar pétalas em cima dos cadáveres, pouco antes de elas próprias serem degoladas, é um quadro de uma brutalidade tal que, a certa altura, temos de pôr um travão para perceber se isto pode integrar uma coleção infantojuvenil ou se não é terror a mais. Mas depois lembramo-nos de que já tivemos aquela idade, e eu lembro-me de gostar de estar chocado. Não sei se os miúdos se sentem muito intimidados com isto. Tenho a certeza de que haverá quem fique, assim como tenho a certeza de que uma boa parte não ficará. A maneira de escrever estes contos procura proteger os miúdos, sim. Porque é tentar sobrevoar um bocadinho as coisas, mas não deixando de as ver em 4K. Sempre com preocupações pedagógicas. O que estes livros dão às pessoas que os leem é a noção de mundo, a ideia de que há outros espaços, há outras culturas e há outros tempos. É isso que propomos que as pessoas encontrem nos nossos livros, a existência de muitas culturas diferentes, muitas realidades, contactos com civilizações que são completamente alienígenas, para nós e para eles. Esta estranheza recíproca aconteceu sempre e é muito divertida — e, às vezes, é completamente violenta, porque não sabemos lidar com o desconhecido. A presença portuguesa no Japão é exatamente isso. Neste sentido, [os Contos Arrepiantes] são livros de tolerância, julgo eu.

MN: Aquilo que noto na vossa coleção é que não estão a colocar os jovens e as crianças numa redoma. Vejo muito isso no infantojuvenil, o tentar aligeirar muito as coisas. E é isto que gosto nesta coleção, não há tentativa de aligeirar os temas.

RC: Os autores são mauzinhos. [risos]

AFN: Até porque mentir é feio. [risos] E acaba por se revelar contraproducente. A intoxicação ideológica a que fomos sujeitos quando aprendemos História de Portugal fez com que mantivéssemos uma determinada imagem do nosso país, falando destas questões de nos relacionarmos com o outro. Não é inevitável que existisse Portugal, como não é inevitável que exista nação nenhuma. É uma série de acasos, de coincidências, de coisas que vão umas contra as outras, até criarem isto. Não vale a pena estar a mentir.

RC: Quando se fala dos Távoras e das torturas, por exemplo, o Hélio apresentou-me uma ilustração que era toda muito gira, e eu achei aquilo muito pouco violento. Os textos dizem que há um tipo que tem uma maça sólida e que parte oito ossos a cada pessoa à frente de toda a gente. Nós podemos fazer um plano cá atrás, e mostramos tudo de longe, ou então mostramos os ossinhos todos a serem partidos, porque foi isso que realmente sucedeu, como dizia a sentença. Não inventámos nada. Há um livro maravilhoso que se chama Só Deus e Nós, que é sobre a vida dos carrascos e quais as consequências de assumir essa profissão. E o [autor] Michel Folco conta histórias engraçadas sobre, por exemplo, cortar cabeças. Na maior parte das vezes, os carrascos eram maus profissionais e incompetentes, e precisavam de várias tentativas. O quadro-espectáculo é completamente inimaginável. A ideia de alguém não ser bom a matar pessoas é hilariante, no meio daquela sordidez toda. Tudo isto é profundamente humano e absurdo. Quando apresentámos o livro no Porto, uma senhora pediu-nos um autógrafo na página dos Távoras, porque era descendente da família e estava divertidíssima com a ilustração. Aquilo não a chocou, porque o horror foi vencido pelo sentido de humor. É bonito assistir quando as pessoas compreendem que não há nenhum desrespeito nesta coleção. Há uma enorme preocupação por respeitar o ser humano, e a ideia é perceber que nos nossos falhanços também está a nossa grandeza. Não se belisca a história-pátria, não se belisca a dignidade da nossa história com estas insuficiências que fomos encontrando ao longo dela. Quando encontramos os lados vergonhosos, embaraçosos, negligentes, malevolentes da nossa história, eles não são senão a afirmação da nossa humanidade. Quanto mais humana e insuficiente for a nossa história, mais gloriosa ela vai ser.

SH: Na pesquisa para estes contos, encontraram histórias arrepiantes, factos que desconheciam? E os vossos alunos já leram os vossos livros, confrontam-vos ou abordam-vos por causa deles?

AFN: Descobri muita coisa que não sabia, complementei outras que já sabia. Descobri que havia algumas que achava que sabia, mas que afinal não sabia assim tão bem. Talvez o maior acaso que me aconteceu seja uma história que apareceu no segundo ou no terceiro volume, que me foi contada pelo meu pai e pela minha irmã. É a história do Fernão Lopes. Não o cronista, mas o Fernão Lopes que esteve na ilha de Santa Helena, que foi castigado como muitos outros. Quanto ao confronto com os alunos, por causa dos livros, nunca me aconteceu. Mas acontece sempre que falo do passado. Tento ser provocantemente rigoroso quando falo no passado porque sei que isso os vai escandalizar, e é uma das coisas que quero que aconteça. Está também relacionado com a questão de que o Rui estava a falar, de conhecer o passado tal e qual como ele é. Quando aprendi História de Portugal, sobretudo na escola primária, fui vítima desse passado glorioso de que levei algum tempo a livrar-me. Não que ele não tenha também sido glorioso, mas porque não tinha uma noção tão próxima como a que tenho hoje daquilo que seria a realidade. E a realidade tem essas cores todas. Esta ideia de que antigamente havia orgulho e hoje há vergonha faz-me a mesma confusão. Eu reservo o orgulho e a vergonha para coisas muito pessoais, não para a história de um país.

RC: Os meus alunos, se viessem dizer coisas contra os livros, eu dava-lhes negativa. [risos] Tenho uma série de alunos que leem os livros e gostam imenso das histórias. A clareza da escrita é muito importante. Preocupamo-nos muito em ser claros. O texto é para crianças, sim, mas não quero que seja exclusivamente para crianças. Para mim, o ideal destas histórias é que sejam intergeracionais. Acho que é assim que deve ser. É um livro perfeito para se ler a pares com pessoas de diferentes gerações. Outra coisa de que fizemos questão foi a de não fugir de palavras difíceis, tentar não imbecilizar os miúdos. A aprendizagem é desconforto. Uma das coisas que nos diverte é a mentira e a importância que a mentira teve ao longo da história.

AFN: A propósito de clareza e palavras difíceis, há uma que me diverte sempre muito. É uma palavra que adoro e que só serve para uma coisa, que nunca é utilizada e ainda bem, que é «defenestração». Não serve para mais nada senão para o ato de atirar alguém pela janela. E a palavra «defenestração» aparece num dos volumes, logo no título do conto.

MN: Ao ler um conto ou uma passagem de que tenha gostado mais, fui levada a pesquisar mais sobre o assunto. Isso também se aplica às palavras difíceis. 

RC: É bom que se perceba que nós somos os dois professores, mas ambos temos esta visão de que, na verdade, não temos alunos, temos pessoas à nossa frente. A escola é apenas uma forma de garantir que as pessoas, em pouco tempo, aprendem bastante. Mas estes livros não são pensados em termos escolares. São livros que contam histórias. A História de Portugal é um campo do saber, não uma disciplina escolar. Interessam-me os leitores. Tudo isto são exercícios de apelo à curiosidade e devem ser entendidos dessa maneira.

MN: Compreendo isso perfeitamente. Sempre tive muita dificuldade com os manuais de História, por exemplo, porque não conseguia dissecar o que lá estava. Achava uma linguagem muito complicada.

RC: Nem imagina a importância e a oportunidade daquilo que está a dizer. Eu e o Nabais somos os responsáveis, com mais um colega meu, Jorge Guerreiro, por fazer um manual de História que pretendeu justamente resolver alguns desses problemas que está a referir. A linguagem dos manuais não foi pensada para eles, mas para os professores deles, e com uma enorme quantidade de informação que eles de forma nenhuma conseguem administrar a si próprios. Aquilo que pretendemos fazer com o manual Procura, que saiu agora para o 9.º ano pela editora Raíz, é garantir que mantemos o mesmo rigor e a mesma exigência, mas tornarmos a linguagem mais clara.

MN: E têm novos projetos, além deste? Quem sabe um livro de histórias para adormecer?

RC: Não vamos levantar o véu, mas há um projeto que é muito diferente do habitual e que é, se calhar, para jovens um bocadinho mais crescidos. Fizemos já um pequeno protótipo e a ideia é muito simples, muito escandalosa. A ideia é pegar em ideias muito polémicas e muito controversas e tentar vesti-las de clareza, outra vez. Vai causar, espero eu, muita urticária.

AFN: Até a quem escreve! [risos]

SH «República Reprimida» vai ser o último volume. Já não há mais histórias arrepiantes para contar?

RC: Ainda não está tudo completamente completo. Se tudo correr bem, ainda há de haver aqui um fecho final. A coleção está obviamente terminada, mas queria referir-lhes uma coisa que Marco Neves disse, na última apresentação que foi feita na Assembleia da República, na Livraria Parlamentar: «agora, espero que não escrevam mais nenhum, porque significava que teria de haver mais terror e massacres». Foi a primeira vez que alguém nos disse: «gosto muito do que escreveram, mas agradecia que não escrevessem mais nenhum». E parece-me muito sensato.

AFN: Era muito bom sinal.

Da esquerda para a direita: Hélio Falcão (ilustrador), Rui Correia e António F. Nabais (autores)