Crítica às curtas portuguesas no Fantasporto 2022
Filmes de terror, animação, thrillers e cinema experimental
Foram oito as curta-metragens portuguesas que passaram pela 42.ª edição do Fantasporto. Sete competiram pelo Prémio Cinema Português que foi atribuído a Misericórdia, de Gonçalo Loureiro.
De Marta Nazaré e Cláudio André Redondo
Misericórdia, de Gonçalo Loureiro — Filme vencedor do Prémio de Cinema Português Fantasporto 2022
Com o intuito de acompanhar a música composta por João Pedro Pinto, Misericórdia, de Gonçalo Loureiro, é um «poema visual» de terror, com uma fotografia invulgar dentro do preto e branco, e que resulta na perfeição no tema proposto. Os elementos mitológicos conferiram uma aura mística, e o órgão de tubos dá um toque medieval a esta história em que uma mulher vestida de branco vagueia pela floresta e encontra um vulto negro. Depois de entrar na água, dá-se a libertação desta jovem que volta a surgir com um manto, olhos brancos e a flutuar. É inevitável questionarmos se esta personagem não terá despertado para uma nova realidade espiritual ou até mesmo se não se terá transformado numa deusa que adquiriu novos poderes. É, sem dúvida, uma curta-metragem com várias interpretações e que consegue envolver-nos no seu universo misterioso.
Jornada de Papel, de Emanuel de Oliveira e Maria Ana Marques
Em Jornada de Papel, Emanuel de Oliveira e Maria Ana Marques apresentam-nos a única curta-metragem portuguesa de animação do concurso. Temos personagens pequenas, com grandes olhos brancos e caras arredondadas, com uma característica que as distingue: a cor no peito. Estes bonecos estão também cobertos de fios que se movimentam consoante o seu estado de espírito. Quando entram no barco de papel para iniciarem a viagem, percebemos que precisam dos braços, desproporcionais ao resto do corpo, para conseguirem remar. O rio que têm de atravessar pode ser entendido, metaforicamente, como o rio da vida onde estas pequenas criaturas fantásticas navegam instáveis e sem rumo ― em barcos de papel frágeis que não controlam ― até chegarem a um destino final.
É uma animação pouco sofisticada, mas original e com uma narrativa simples, com o propósito de se aproximar de um público infantil e, assim, transmitir melhor uma mensagem de amor, generosidade e solidariedade.
Refém, de Pedro Mira
Neste thriller, Pedro Mira soube manter sempre uma atmosfera de suspense. Temos uma jovem chamada Maria que foi «feita refém». Com o desenrolar intenso desta narrativa ― em que o telemóvel do raptor toca várias vezes para receber instruções cada vez mais arrojadas ―, vamos percebendo que o raptor poderá não estar ali de livre vontade. Embora esta curta-metragem faça um bom uso de todos os elementos que esperamos ver nos policiais e nos faça querer chegar depressa ao desenrolar da narrativa, para perceber onde todas as peças encaixam, o final não é totalmente claro e fica a saber a pouco, com demasiadas questões por responder.
Skull 2: A Variation or The Wars to Come, de Luís Miranda
Luís Miranda trouxe-nos uma curta-metragem experimental em que a música metal e a imagem da caveira ― diretamente ligada com o arquétipo da morte ― atuam como uma espécie de aviso para o fim de um ciclo, que pode ser interpretado de forma positiva ou negativa. Aqui, porém, a mensagem pende mais para uma interpretação negativa, a chegada profética dos Cavaleiros do Apocalipse, reforçada, por exemplo, por mensagens como «guerra», «fome», «morte» e «peste» a aparecerem no ecrã. Embora tenha sido a curta-metragem com menos duração das sete apresentadas a concurso, foi a que teve mais impacto a nível sensorial, tornando-se visualmente inesquecível. De notar ainda que tudo foi feito pelo Luís Miranda, incluindo a banda sonora pesada que acompanha de forma perfeita o tema.
Fruta Tocada por Falta de Jardineiro, de Pedro Senna Nunes
Fruta Tocada por Falta de Jardineiro é uma «curta-poema», baseada no livro com o mesmo nome de Jorge Listopad. Como este autor escreve sobre o que é efémero ― sobre os jardins que mudam nas estações, mas permanecem os mesmos ―, consideramos que esta curta-metragem foi bem-sucedida em transmitir essa ideia através da presença marcante da transformação da natureza: as folhas das árvores que caem, a água que corre, a fruta que amadurece, o tempo que passa. Ocasionalmente, um comboio atravessa a paisagem como que a indicar a viagem do passado para o futuro, em que tudo é passageiro, e trilhamos o nosso percurso, avançando, inevitavelmente, para a morte. A beleza e sensibilidade poéticas sem igual desta curta-metragem tornaram-na singular neste concurso.
Dilúvio, de Eduardo Cruz
A curta-metragem de Eduardo Cruz é a mais longa deste concurso e transporta-nos para o isolamento de uma aldeia onde uma família enfrenta um dilúvio de quatro anos somente com a força da fé. Do início ao fim, a presença da água e a ausência do Sol é uma constante. Sentimo-nos desconfortavelmente submersos neste terror psicológico muito português, a partilhar as tormentas desta família que acredita ser vítima de um castigo divino. Assistimos à deterioração lenta de tudo ― desde o estado de espírito das personagens ao que cultivam na horta ― e identificamo-nos com a sensação de desesperança, de angústia, de uma tormenta que poderá não acabar. Termina com chave de ouro. A bonança acaba por chegar depois da tempestade, mas não da forma que estávamos à espera. Um filme que permite várias interpretações e com uma qualidade geral muito acima do que normalmente se vê em projetos de escola, como é o caso.
Lê aqui a entrevista da Fábrica do Terror ao realizador Eduardo Cruz
Atrás da Porta, de Tom Freitas, Bruno Acosta e Inês Paredes
O que está do outro lado da porta? E porque temos medo de saber o que lá está? Estas são algumas das perguntas a que Tom Freitas, Bruno Acosta e Inês Paredes se propuseram a responder em Atrás da Porta. Esta curta-metragem tem os alicerces bem assentes no terror psicológico. Aborda com mestria o medo irracional que nos pode invadir numa noite escura, quando estamos sozinhos em casa e ouvimos sons estranhos, sendo que, neste caso, é um bater à porta desenfreado e sem explicação. Os monstros ou criaturas que aparecem são indefinidos, não têm características, mas isto é propositado, porque assim podermos dar-lhes a forma dos nossos próprios medos. Conseguiram, de forma simples, mas com uma surpreendente competência transformar uma porta numa passagem para as tormentas da personagem, deixando-nos desconfortáveis e com um crescendo de ansiedade, durante o desenrolar da história.
Lê aqui a entrevista da Fábrica do Terror aos realizadores Tom Freitas e Inês Paredes
Meu Castelo, Minha Casa, de José Mira
Meu Castelo, Minha Casa aborda uma temática muito atual: as relações pouco saudáveis entre figuras de autoridade e crianças, sendo que essas figuras podem ser tanto os pais como os professores. Nesta curta-metragem de terror surrealista, temos a história de Guilherme, um jovem atleta que é intimidado pelo treinador de ténis a praticar até ao limite, e a sua mãe parece pactuar com isso. Num dia, ao chegar a casa, encontra criaturas estranhas com mãos de raquete que o perseguem pelos corredores. Percebemos que não era com essas criaturas que ele se deveria preocupar, mas sim com as transformações bizarras que o seu corpo começa a sofrer e das quais nem mesmo a mãe o pode salvar. Uma curta-metragem extra-concurso, divertida e muito bem feita, que fechou de forma perfeita a exibição de filmes nesta categoria.