A Mãe Que Alimenta

De Ivo Pires

 

— Estou a dizer-te que há alguma coisa errada! — insisto, esforçando-me para não elevar a minha voz exasperada acima de um sussurro. Não posso falar mais alto e correr o risco de acordar o bebé. Não quando finalmente o consegui adormecer, depois de horas de gritos e choradeira.

Do outro lado da linha, ouço o meu marido escarnecer.

— Vá lá, querida, não estás a exagerar? É mesmo assim, os bebés choram. Não têm outra forma de comunicar!

Claro que falar é fácil quando se está a quilómetros de casa, numa viagem de negócios, sem uma cria de mês e meio a exigir atenção constante. Guardo esse comentário para mim. Falta-me a energia para discutir.

— Vamos levá-lo ao pediatra assim que voltares — informo, decidida. — O bebé não dorme, está sempre a acordar aos berros, sempre a querer mamar…

— Mas vamos ao pediatra fazer o quê?! — retruca o meu marido. — Ainda há pouco lá estivemos. E ouviste o que ele disse tão bem como eu! Se o bebé quer mamar, então damos-lhe de mamar.

— O pediatra também disse que devíamos espaçar as mamadas duas a três horas! — recordo-o, num tom mordaz. — Ele, às vezes, nem meia hora dorme! E se o… E se o meu leite não estiver em condições?

Liberto, por fim, o receio que me atormenta desde que aquela pequena criatura veio ao mundo.

— Não sejas tonta, o teu leite está óptimo! — afirma o meu marido, o especialista.

— Não sei… Parece que nunca o deixa saciado…

— É um pico de crescimento — insiste ele, como se percebesse alguma coisa do assunto, como se tivesse lido tanto quanto eu li sobre isto, como se fossem dele os mamilos gretados pela amamentação constante. — Se ele tem fome, dás-lhe a mama e pronto!

— Eu preciso de descansar! — Estou tão exausta que, desta vez, não consigo evitar gritar. Lanço um olhar amedrontado na direcção do berço, mas por sorte não acordei o bebé.

— Vá lá, querida, tem lá calma. — A voz do meu marido reveste-se daquele tom que eu detesto. Aquele que ele considera compreensivo, mas que, na realidade, é condescendente. — É claro que tens de descansar… Amamentar exige muito de ti. Tens de aproveitar para dormir quando o bebé dorme.

— Mas tu ouves o que eu estou a dizer?! — A incredulidade manifesta-se numa pequena gargalhada de puro desespero. — O bebé não dorme!

— Ele está a dormir agora, não está? Podias estar a descansar. Mas preferiste ligar para me moer o juízo!

Não tenho paciência para uma discussão. Respiro fundo e passo ao que interessa.

— Quando é que voltas?

— Já te disse. Só na quinta-feira.

— Hoje é o quê? Quarta? — Na minha cabeça, os dias misturam-se todos. Nem faço ideia de que horas são.

— Não, hoje ainda é terça. — Solta um suspiro. — Ouve, queres que diga à minha mãe para passar por aí?

— Não é preciso — respondo de imediato. Não preciso dela aqui a observar-me, a tecer julgamentos, a corrigir tudo o que eu faço. Não, obrigado.

— Tu é que sabes… — Outra vez, aquele tom; o tom que me pinta como dramática, que me acusa de criar problemas e rejeitar soluções. — Tenho de ir, vou ter uma reunião.

— Vai lá — digo secamente.

Ele desliga sem se despedir. Não gosta que o incomode com os meus problemas.

Estendo-me no sofá e fecho os olhos por um bocado. Tenho de dormir quando o bebé dorme, não é verdade?

O choro dele não tarda a despertar-me. Novamente aquele apetite voraz que me impede de espaçar as mamadas como o pediatra sugeriu. Terei dormido quinze minutos, sequer? Não pode ter sido tanto, ainda me sinto mais cansada do que quando me deitei. Mal consigo organizar os pensamentos.

— A mãe já vai — anuncio, com uma ternura que pouco faz para disfarçar o cansaço.

Arrasto-me até ao berço e debruço-me para pegar no meu filho. Ele concede-me um precioso segundo de silêncio ao avistar os meus seios. É só isso que sou para ele, uma fonte de alimento. Sem aviso, o choro regressa em dobro, reclamando aquilo que era seu e tardava.

Tomo-o no colo, entre berros e soluços, e encosto-o ao mamilo, que ele abocanha com sofreguidão. Segue-se uma paz efémera enquanto ele me drena uma vez mais. Ao fim de uns instantes, porém, atira a cabeça para trás e entrega-se a novo pranto. Troco-o de mama, mas o resultado é semelhante.

Tal como eu temia. Não vale a pena continuar a enganar-me, o meu leite secou. Não admira que o pobrezinho esteja sempre esfomeado, o meu leite já devia estar fraco há dias. Estou a dar fome ao meu filho.

Ele grita com um choro cada vez mais incomodativo. Quer comida, quer vida. Exige saber porque lhe nego o alimento.

— Calma, bebé, calma — cantarolo enquanto o embalo nos braços, tentando que sossegue.

Fecho os olhos uns instantes… Preciso de silêncio… Preciso de pensar…

Ele não colabora. A sede é grande, a fome dói-lhe. 

— O que é que eu posso fazer? — pergunto-lhe, sabendo que ele não terá resposta. Eu é que devia ter as respostas, eu é que sou a mãe.

Mas não consigo pensar, não com este alarido.

Estou tão cansada…

Ele continua a gritar. A comida não chega, a vida esvai-se.

Preciso de alimentar o meu filho. É a minha função, o meu papel. Só eu o posso fazer. Não o meu marido, e certamente não a minha sogra. Apenas eu, a mãe. A mãe que alimenta, que sustenta, que sangra.

É então que a solução desce sobre mim.

Ao som de uma gritaria crescente, cambaleio até à cozinha e abro uma gaveta.

Sirvo-me de uma tesoura e, num único movimento, corto o meu mamilo fora.

Encosto, por fim, a besta esfomeada ao peito e fico a observar, embevecida, enquanto ele mama com satisfação, sangue escorrendo-lhe pelos cantos da boca, bebendo a vida através de mim.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Ivo Pires

Ivo Pires nasceu em 1987, em Valongo, no Porto. Enquanto licenciado em Farmácia, já trabalhou em farmácias, num estabelecimento prisional, como docente, e em farmácia hospitalar. É um homem da ciência, mas prefere trilhar o caminho da ficção fantástica. Adora música, livros, séries, jogos de tabuleiro, escape rooms e um bom desafio. Morte à Primeira Vista é o seu primeiro livro, uma aventura de ficção fantástica com toques de policial, algum humor e reviravoltas inesperadas.


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